Aparte
Opinião - Manter o ECA vivo é o nosso maior desafio

[*] Natalia Dalto

No último dia 13 o Estatuto da Criança e do Adolescente completou 30 anos. Há o que se comemorar? Certamente que sim. Temos uma lei que até hoje é reconhecida mundialmente como a mais bem elaborada em relação à conduta jurídica para com crianças e adolescentes, responsável por avanços significativos na proteção dessa parcela tão sensível da nossa sociedade.

Entretanto, é importante termos o entendimento de que um estatuto é uma lei de caráter especial, na qual os seus objetivos vão muito além da esfera judicial. Refiro-me a uma pretensão jurídica comumente definida como “o espírito da lei”, tão bem analisada em O Espírito das Leis, clássico do iluminista de Charles de Montesquieu, publicado em 1748, uma das obras inspiradoras da Revolução Francesa.

Montesquieu imortalizou-se como pensador político ao propor, nesta obra, a divisão jurídica do Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário, modelo adotado universalmente a partir do 14 de julho de 1789. Mas, no nosso caso presente, em relação ao ECA, deveríamos nos debruçar sobre o terceiro capítulo, no qual o autor faz reflexões sobre a relação entre as leis, os costumes e a cultura, para entendermos qual é verdadeiramente o espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente.

É evidente que todas as leis são criadas como solução para uma realidade existente no momento da sua publicação, e permanecem em vigor na perspectiva de que a sua existência seja segurança para impedir agressões ao direito individual ou coletivo; e, que por força da possibilidade de punição não se repitam.

Entretanto, é certo que toda e qualquer lei é passível de críticas e necessidades de atualização a partir da dinâmica transformadora da sociedade. E com o ECA não é diferente. Alguns o consideram demasiadamente brando do ponto de vista punitivo em relação aos menores infratores.

Outros acreditam ser ineficiente como mecanismo de ressocialização. Todavia, nenhuma dessas questões está diretamente relacionada ao espírito da lei que o instituiu, que é o estímulo a uma mudança de postura da sociedade em relação às suas crianças e adolescentes.

Nesses 30 anos tivemos alguns avanços civilizatórios importantes em nosso país. A defesa dos animais é um deles, mas a despeito de todo o mérito que tal transformação faz por merecer, há um contrassenso difícil de explicar: hoje, em geral, um cachorro abandonado gera uma comoção e uma mobilização maiores do que uma criança perambulando nas ruas.

Os mesmos que denunciam o trabalho infantil se omitem ou sequer “se tocam” diante de uma criança trabalhando como flanelinha ou limpando para-brisas de carros nas sinaleiras. A violência física, inclusive estupros e assassinatos de que esses “brasileirinhos” são vítimas, parece crescer a cada dia.

E, o pior: não há uma preocupação efetiva com o futuro dessas crianças, inclusive das que estão sob a custódia do Estado em instituições mantidas com recursos públicos, na perspectiva de transformá-los em cidadãos.

O ECA completou 30 anos e deveria estar no auge da sua vitalidade, entretanto o seu espírito está envelhecendo precocemente e, se a sociedade não mudar a sua postura para entender que o futuro do nosso país depende de trazermos para cada um de nós a responsabilidade por nossas crianças e adolescentes, em breve o Estatuto vai agonizar até se transformar numa lei morta. Portanto, o nosso maior desafio é impedir que isso aconteça.

[*] É assistente social e pesquisadora.

Deixe seu Comentário

*Campos obrigatórios.