Aparte
OPINIÃO - Os Observatórios Sociais da UFS e a Universidade no século XXI

(*) Marcus Eugênio Oliveira Lima

Clark Kerr, no seu livro “Os usos da universidade: Universidade em questão” , analisa a universidade norte-americana e conclui que ela enfrentou quatro eras: origem (1810-1870), crescimento lento (1870-1940), expansão rápida e extensão da atividade (1940-1970) e, finalmente, a era dos recursos restritos (1990-2015). 

Boaventura Sousa Santos, analisando a universidade europeia, identifica três crises com as quais se defronta a Universidade: 1) crise de hegemonia, derivada das contradições entre, por um lado, as funções tradicionais na produção de alta cultura, pensamento crítico e conhecimentos exemplares para formação das elites e, por outro, da produção de padrões culturais médios e instrumentais para a formação de mão de obra para o desenvolvimento econômico; 2) crise de legitimidade, decorrente da perda de poder da Universidade enquanto instituição consensual no credenciamento das competências e 3) a crise institucional, decorrente das contradições entre autonomia universitária e submissão a critérios de eficácia e de produtividade de natureza empresarial . 

A universidade brasileira passa por eras e crises que não diferem das acima referidas. Tivemos um surgimento tardio, enquanto instituição. A nossa primeira universidade oficial foi criada apenas em 1920, a Universidade do Rio de Janeiro, não obstante termos escolas de ensino superior desde 1808 . Passamos por um fase de crescimento lento das universidades, que durou de 1920 até 2003 . 

Na década de 1990, a proporção de jovens entre 20 e 24 anos ingressantes no ensino superior brasileiro era de 11.4%, resultado que na América Latina nos colocava à frente apenas da Nicarágua e Honduras . A partir de 2003, motivados pela Constituição de 1988, que abriu o ensino superior à iniciativa privada e pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído em 2007, vivemos até 2014 um período de expansão e interiorização do ensino superior no Brasil, como referem os dados do IBGE. 

Com efeito, o número de cursos superiores mais que duplicou entre 2003 e 2013. Todavia, a partir de 2015 uma série de cortes orçamentários inaugura, ou reinaugura, o período de recursos restritos e declinantes para a educação superior no Brasil. Ou seja, não obstante a curta história da universidade no Brasil, já vivenciamos eras e crises semelhantes às das universidades norte-americana e europeias. 

As crises trazem impactos para a Universidade e demanda dela decisões mais eficientes e participativas sobre novas formas de ação e de existência. Todavia, mudar não é algo fácil para as universidades. Como refere Kerr (2005), as universidades estão entre as mais conservadoras instituições do mundo ocidental, pois praticamente não mudaram ao longo dos últimos cinco séculos. Transformar-se não é mais uma mera questão de escolha, mas um imperativo de sobrevivência para a Universidade. 

Tal necessidade fica evidente nas palavras de Naomar Almeida Filho, ex-reitor da UFBA e da UFSB: “Sobre esse tema, de uma coisa tenho algum grau de certeza: a superação da crise da universidade brasileira mediante a reforma profunda das instituições acadêmicas é condição absolutamente necessária para a retomada do desenvolvimento econômico e social sustentado e para a construção de um projeto viável de nação neste país, neste século.” (p. 252) 

A reforma da Universidade passa, segundo a nossa leitura dos autores citados, por, pelo menos, quatro dimensões fundamentais: enraizamento, financiamento, abertura e autonomia socialmente responsável.

O enraizamento, como proposto por Boaventura Santos, consiste numa busca por legitimidade e eficácia no lugar (contexto) histórico, geográfico e social onde a universidade se situa. Ou seja, a mudança deve produzir uma nova universidade “comprometida com as aspirações democráticas e de justiça social da sociedade mais próxima; mas, ao mesmo tempo, plenamente envolvida na tarefa de contribuir para uma globalização solidária do saber universitário no continente latino-americano e no mundo” (p. 5) . 

Em relação à dimensão do financiamento, as universidades devam trabalhar para captar recursos financeiros externos e reduzir seus custos através da modernização da gestão. Sobre esse aspecto, precisaremos enfrentar os riscos da interferência dos “financiadores” nas atividades-fim da instituição, salvaguardando da mercadorização sua autonomia.

A terceira dimensão para a construção de uma Universidade nova é a da abertura. Abertura aqui tem dois sentidos: democratização do acesso e universalização dos resultados. Em outras palavras, na esfera do acesso e permanência, a universidade precisa incluir mais pessoas e grupos, aprender a lidar com a diversidade e criar sólidas e eficientes políticas de permanência; mas igualmente precisa cuidar da esfera da “transcendência”, ou seja, precisa traduzir, exteriorizar e universalizar aquilo que produz para a sociedade. Como refere Renato Janine Ribeiro, a noção de bem público não deve estar adstrita ao acesso, mas também aos resultados produzidos, os quais devem difundir-se por toda a sociedade e serem apropriados por ela . 

A abertura, assim como o financiamento privado, pode implicar riscos para a autonomia universitária: riscos internos e externos. Os riscos internos se referem, nas palavras de Boaventura Santos (2008) ao “facto de as universidades se terem isolado socialmente pelo modo como contemporizaram com a mediocridade e a falta de produtividade de muitos docentes, pela insensibilidade e arrogância que revelaram na defesa de privilégios e de interesses corporativos (...) e pela ineficiência por vezes aberrante no uso dos meios disponíveis, tornando-se presa fácil de burocracias rígidas, insensatas e incompreensíveis; pela falta de democracia interna e a sujeição a interesses e projectos partidários que, apesar de minoritários no seio da comunidade universitária, se impuseram pela força organizativa que souberam mobilizar; e, finalmente, pela apatia, o cinismo e o individualismo com que muitos docentes passaram ao lado destas realidades como se elas e a instituição que as vivencia não lhe dissessem respeito” (p. 22). 

Os riscos externos de uma maior integração com a sociedade referem-se à ameaça de desintegração dentro do campus. As demandas externas vêm carregadas de pressão sobre os caminhos e os modelos que a universidade deve seguir ou adotar, criando desafios para os líderes acadêmicos manterem seu próprio senso de direção e seu próprio senso de valores. Como refere Kerr (2005): “Quanto mais a universidade é vista como uma série de instrumentos para ajudar neste ou naquele interesse da sociedade, mais difícil será para reitores e líderes docentes trabalharem para estabelecer suas próprias prioridades, afirmarem a independência da universidade, determinarem como melhor podem servir ao bem estar geral e decidir como poderão governar a si próprios e não serem totalmente influenciados pelos outros.” (p. 269)

Finalmente, a quarta dimensão aventada para transformar e conduzir as universidades em direção ao já iniciado século XXI é a que chamamos de “autonomia socialmente responsável”. A autonomia precisa ser preservada enquanto princípio fundamental de autogestão das universidades. Todavia, a autonomia não pode ser justificativa para fazermos o que quisermos, quando quisermos e do modo que quisermos. O conhecimento produzido nas universidades tem sido ao longo do tempo um conhecimento predominantemente disciplinar, e graças à autonomia na sua produção acabou por ser, muitas vezes, descontextualizado e mesmo alheio aos interesses das pessoas e grupos externos às universidades. 

Trata-se de um “conhecimento assente na distinção entre pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico e a autonomia do investigador traduz-se numa certa irresponsabilidade social deste ante os resultados da aplicação do conhecimento”. (Santos, 2008, pp. 39-40). A nova universidade precisa pois articular à Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire à Pedagogia da Afiliação de Alain Coulon, para assim formar cidadãos, ao mesmo tempo, flexíveis e móveis, decisivos e responsáveis, críticos e competentes (Almeida Filho, 2008).

Essa nova organização da Universidade implica uma mudança no modo de produzir e, sobretudo, compartilhar o conhecimento, processando uma passagem do conhecimento universitário para o “conhecimento pluriversitário” (Santos, 2008). Significa que a produção do conhecimento passa a ter como princípio organizador o seu uso ou aplicação. Nessa nova lógica acadêmica, os públicos extramuros da universidade atuam junto com docentes, técnicos e discentes, tanto na formulação dos problemas quanto na definição das relevâncias. 

Altera-se, portanto, radicalmente a relação universidade/sociedade. Nas palavras de Boaventura Santos: “À medida que a ciência se insere mais na sociedade, esta insere-se mais na ciência. A universidade foi criada segundo um modelo de relações unilaterais com a sociedade e é esse modelo que subjaz à sua institucionalidade actual. O conhecimento pluriversitário substitui a unilateralidade pela interactividade, uma interactividade enormemente potenciada pela revolução nas tecnologias de informação e de comunicação”. (p. 43)

Essa nova forma de produção do conhecimento traz uma série de consequências fundamentais para a universidade. Ela aumenta a centralidade das atividades de extensão universitária, repactuando a definição dos projetos ou planos de ação, que passam a ser discutidos, elaborados, executados e avaliados num ambiente de “ecologia de saberes”. Ou seja, em espaços institucionais que permitam encontros e promovam diálogos entre o conhecimento técnico, científico e humanístico da universidade com os saberes populares que circundam a academia, criando “comunidades epistêmicas” mais amplas (Santos, 2008). 

A pesquisa também se altera nessa nova ordem. A universidade deixa de ser uma mera “cidade do intelecto” no sentido de Kerr (2005), pois, paralelamente à pesquisa básica e tão importante quanto ela, surge uma pesquisa voltada para a ação, que toma como agenda os interesses sociais extramuros, articulando-os aos interesses científicos e de formação dos alunos, para produzir um conhecimento ligado às demandas dos grupos sociais, sobretudo daqueles com menos acesso ao conhecimento e ao poder.

A forma operativa dessa nova arquitetura acadêmica seria, por exemplo, as oficinas de ciência referidas por Santos (2008, pp. 71-72): “Uma oficina de ciência é uma unidade que pode estar ligada a uma universidade e, dentro desta, a um departamento ou unidade orgânica específica, e que responde a solicitações de cidadãos ou de grupos de cidadãos, de associações ou movimentos cívicos ou de organizações do terceiro sector e, em certos casos, empresas do sector privado para o desenvolvimento de projectos que sejam claramente de interesse público (identificação e proposta de resolução de problemas sociais, ambientais, nas áreas do emprego, do consumo, da saúde pública, da energia, etc.; facilitação da constituição de organizações e associações de interesse social comunitário; promoção de debates públicos, etc.). A solicitação é estudada em conjunto através de procedimentos participativos em que intervêm todos os interessados e os responsáveis da oficina de ciência”. 

É essa, em linhas gerais, a proposta presente nos Observatórios Sociais que o professor Angelo Roberto Antoniolli implantará na UFS. A ideia dos Observatórios surgiu ainda na primeira gestão como reitor do professor Angelo. Trata-se de um novo espaço físico, localizado num novo edifício (a Didática VII) e, ao mesmo tempo, um novo espaço social e epistêmico. Social porque integrará pesquisadores, extensionistas, alunos de graduação e de pós-graduação aos públicos sociais externos à academia em fóruns de “ecologia dos saberes”. Epistêmico porque o conhecimento produzido terá essa marca da diversidade e do encontro e, simultaneamente, da instrumentalidade da ação de transformação. O espaço físico já está construído. A forma de gestão dos novos espaços sociais e epistêmicos está sendo discutida e será gestada nos Conselhos Superiores, com a participação de toda a comunidade acadêmica e com a representação de setores sociais externos à UFS.

Os Observatórios Sociais da UFS terão como missão instituir políticas de ensino, pesquisa e extensão que, através de programas/projetos integrados, promovam a relação entre a Universidade Federal de Sergipe e os diferentes segmentos da sociedade. Abaixo destacamos os principais objetivos dos Observatórios: 

Elaborar e implementar projetos de ensino, de pesquisa e de extensão comprometidos com a solução de problemas da UFS e de Sergipe, com a melhoria da qualidade de vida, com a preservação do meio ambiente e com a busca do desenvolvimento com sustentabilidade. 

Intensificar a interação da Universidade com o setor produtivo, com a comunidade local e com os segmentos populares a partir da ampliação dos programas/projetos de ensino, pesquisa e extensão.

Promover debates articulados com a sociedade civil e/ou organismos governamentais, para discussões e proposições de alternativas para os problemas socioambientais.

Fortalecer o intercâmbio com organizações da sociedade, estabelecendo mecanismos de troca de experiências e informações.

O passo decisivo já foi dado: trata-se de, com a breve inauguração dos Observatórios Sociais, aglutinar a comunidade acadêmica aos setores populares para produzir conhecimento que efetivamente transforme a vida das pessoas e o modo de fazer universidade.

(*) Professor do Departamento de Psicologia (UFS) e responsável pelo Núcleo de Promoção da Qualidade (NPQ-UFS).

II Kerr, C. Os usos da universidade: Universidade em questão. 3ª ed. Brasília: EDUNB, 2005. 3ª edição publicada em 2005 pela EDUNB, Brasília. 
III Pela Mão de Alice: o Social e o Político na Pós-modernidade. São Paulo: Editora Cortez, 1995.
IV Fávero, M. de L. de A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968. Educar, n. 28, p. 17-36, 2006. 
V Martins, A.C.P. Ensino superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais. Acta Cirúrgica Brasileira, 17, 2002.
VI Idem a anterior
XII Almeida Filho, N. Universidade Nova no Brasil. Em B.S. Santos e N. Almeida Filho (Orgs.), A Universidade no Século XXI: Para uma Universidade Nova. Coimbra, 2008.
XIII Santos, B.S. A Universidade no Século XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade. Em B.S. Santos e N. Almeida Filho (Orgs.), A Universidade no Século XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade. Coimbra, 2008.
IX Ribeiro, R.J. A universidade e a vida atual: Felinni não via filmes. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

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