Aparte
Opinião - O combate à distorção democrática. Participação política e construção social

[*] Flaviano Correia Cardoso

Estamos em uma era marcada pela confusão entre interesses públicos e privados. E, embora todos saibamos que política é o principal meio que nós humanos encontramos para resolver os nossos problemas, ela tem sido escanteada. Afinal, como se diz, “isso é coisa de político”. Tal distanciamento é histórico em nosso país, e suas consequências são trágicas, e findam por distorcer uma das maiores descobertas da vida social: a democracia.

O Estado (Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, repartições públicas, polícia etc) foi criado por todos para representar o interesse comum de uma nação. Ele é nosso e nós somos a razão de sua existência.

O mais absurdo é que, mesmo possuindo os melhores instrumentos da história para a participação coletiva, as pessoas não controlam o destino de seus recursos, não fazemos parte das principais decisões do país.

Na prática, aqueles que escolhemos para isso “ganham asas” e agem de acordo com os seus próprios interesses, como se fosse uma carreira pessoal. Isso está errado e precisa mudar urgentemente.

Nunca vivemos um momento em que a distância entre o povo e o poder tenha sido tão grande. A grande contradição é que não era isso que queríamos quando reconstruímos democraticamente o Estado Brasileiro.

Em nossa Constituição está no primeiro artigo: “todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes do povo, ou diretamente[...]”. Contudo tão grande é a apatia, o individualismo e o afastamento da população, que esse poder de decidir tudo, escorrega dos interesses coletivos e sociais para os privados e individuais.

Não existe vácuo na política. A ausência de participação e compreensão democrática tem como principal efeito a organização de grupos de poder que, literalmente, investem na política para auferir retorno econômico para os seus negócios.

Esse lobbie permanente tem por consequência a construção de uma democracia às avessas. É preciso que definamos quais são as prioridades do país de acordo com a necessidade mais amplas da nação.

O mundo não será definido pela ideia de bem-viver, conforto ou segurança social enquanto todos nós, que somos realmente a razão da existência da política, não participarmos ativamente dos espaços públicos capazes de distribuir o poder social.

O Brasil teve uma constituição social complexa e diversificada. Do completo desrespeito aos povos indígenas, que lutam desesperadamente por sua identidade cultural e territorial, à uma tardia abolição da escravidão sem conquistas sociais reais, mantemos um racismo estrutural que reflete uma realidade desigual refletida em indicadores sociais em diferenças de acesso e oportunidades.

Por outro lado, a história nos brindou com a capacidade de construir um movimento da classe trabalhadora que findou por desenvolver um potente instrumento sindical, popular e político. Movimentos sociais, em luta por décadas, conquistaram direitos e construíram as condições para a consolidação de um partido de trabalhadores.

Esse instrumento pujante se estruturou e foi a principal ferramenta para a redemocratização do Brasil e, ao se fortalecer, alcançou o principal posto de comando da nação. Para assumir o comando, contudo, não basta apenas chegar no governo. Seria preciso construir poder real.

Em nossa democracia, isso significa participação direta dos trabalhadores em seus instrumentos de organização. Isso significa consciência e engajamento de todos os trabalhadores a partir de suas necessidades reais em busca de dignidade e felicidade. Dos locais de trabalho, aos locais de moradia a organização e engajamento social deve se dar em todas as esferas de convivência social.

Não podemos permitir que a polícia, o judiciário, os parlamentares e o conjunto de poderes estatais criados por nós tenham vida própria e passem por cima dos fundamentos de nossa democracia. Não é correto que estes poderes decidam por nós quem deve ou não ser preso ou condenado, em meio a motivações políticas e ideológicas.

Não podemos permitir que grupos militares, conglomerados econômicos, grupos religiosos e conservadores, determinem o que é certo ou é errado. Afinal, vivemos em um país laico e plural.

É tempo de exigir controle social das instituições, já que estas não existem em si. Ao contrário, a sua condição de existência depende de uma demanda e papel social. O governo atual é incompatível com a história de luta e resistência do país.

A sua vitória só pôde ser possível diante do abismo democrático conduzido pelo não fortalecimento da participação popular. Não é demais concluir que a esquerda está desperdiçando a sua grande chance de modificar a estrutura da democracia. Mas para a nossa felicidade, uma grande derrota é também uma grande oportunidade de construir grandes acertos.

O sacrifício feito pela esquerda, não foi em vão. Se é verdade que um sentimento de desilusão com a esquerda se fortaleceu, também é verdade que a sociedade amadureceu no entendimento de que os ricos são os maiores favorecidos neste jogo promíscuo da privatização da política.

Acompanhar de perto para exigir uma participação mais real do conjunto da população no controle do poder, parece ser a única forma de amadurecer a democracia e recolocá-la em seu lugar na história. É hora de fazer cessar os efeitos do erro.

É hora de exigir que cesse a farsa da prisão inédita de um ex-presidente que representou os anseios de mudança estrutural dessa política. O fato da coalizão social e as escolhas táticas deste governo não terem sido capazes de implementar essas mudanças não significa que não representem e que não serão capazes de insistir nessa tarefa.

Seria preciso muita hipocrisia sócio-histórica para acreditar que as experiências de distorção privatista experimentadas pelo governo do PT foram inéditas em nossa história democrática. O fato novo é que agora o sistema está nu!

Agora todos testemunharam as relações de poder que eram, historicamente, ocultas. Tamanho foi o risco social que esta situação representou às elites, que foi necessário destituir uma presidente e prender um ex-presidente para frear as consequências de tal esgarçamento das relações distorcidas de nossa democracia capitalista.    

As descobertas da articulação do Judiciário e do Ministério Público com a estrutura moral do militarismo e da Igreja Conservadora Neopentecostal apresentou para toda a sociedade que é possível forjar um líder messiânico conservador para realizar um verdadeiro contra-ataque das elites, a fim de manter e conservar suas relações com o Estado.

O que os tais usurpadores do poder não desconfiavam é que o desenvolvimento das forças produtivas não é mais compatível com o assalto dos princípios democráticos e republicanos. Tal tentativa, uma vez desmascarada, reabre as portas da continuidade da luta contra a farsa democrática.

É preciso articular todos que estão sensíveis a esse processo. Os sujeitos sociais das mais diversas profissões e áreas do conhecimento devem reassumir seu papel histórico. É necessário construir um movimento amplo em toda sociedade, com o objetivo de fazer cessar ataques aos nossos direitos sociais e à soberania nacional.

É preciso emitir e organizar opiniões na prática viva do cotidiano. A saída continua sendo a mesma: resistir, informando-se. Organizar-se para discutir ideias críticas, para que fundamental e consequentemente possamos participar e superar a farsa em que foi transformada a nossa democracia!

[*] É advogado e empregado público da Caixa Econômica Federal.