Aparte
Opinião - Fundo Social do Pré-Sal como combate ao Convid-19: a hora e a vez do pacto federativo

[*] Édson Holanda

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é tida como um marco formal do federalismo e da descentralização do poder estatal, visto que estabeleceu mecanismos de autonomia dos entes federativos - União, Estados e Municípios - e impôs verdadeiro dever de cooperação e de atuação coordenada entre eles.

A carta constitucional tratou, portanto, de incrementar a independência financeira de Estados e Municípios frente à União, conferindo-lhes novas receitas originárias e derivadas compulsórias. As receitas estatais oriundas da exploração de petróleo e gás natural, por exemplo, assumiram posição de destaque na concretização desse novo paradigma constitucional de autonomia e independência dos entes federativos.

Parcela da doutrina e jurisprudência sobre o tema tem defendido que quaisquer dispositivos ou interpretações de lei que rechacem a repartição - entre União, Estados e Municípios - das “participações sobre o lucro da exploração de petróleo” e de “compensações financeiras” devem ser tidos como contrários ao artigo 20 da Constituição Federal e, consequentemente, ao sistema federalista brasileiro.

Diversos dispositivos constitucionais parecem evidenciar que o federalismo cooperativo é o sistema de governo eleito pelo legislador originário de 1988. Dentre eles, o rol de “competências comuns” elencado na CRFB-88, que impõe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios um agir comum, cooperativo - e não um dever de submissão de certos entes federativos a outros.

A pedra de toque do federalismo cooperativista pressupõe, portanto, uma paridade, uma interdependência pautada no diálogo e na formação de consensos entre as distintas esferas de governo. Ao trazer o conceito de federalismo para os estratosféricos volumes monetários envolvidos com a exploração de hidrocarbonetos, o acesso ou a restrição de entes federativos às receitas estatais do petróleo certamente condiciona de forma substancial as dinâmicas dos governos estaduais e locais.

O debate diz respeito à autonomia financeira e gerencial de Estados e Municípios e, consequentemente, ao equilíbrio federativo. Nesse tema destacando-se que autonomia deve ser lida como independência financeira, política e administrativa, sobrepondo-se a financeira, uma vez que é o alicerce, o primeiro passo, para a construção dos outros dois.

O panorama delineado ganha importância no momento atual, dada a crise instaurada por força da pandemia Convid-19, que ligou o alerta dos três entes subnacionais, demonstrando que essa crise atinge toda a federação.

A queda brusca nas receitas de União, Estados e Municípios em contraponto ao aumento de despesas com os investimentos necessários ao combate do CONVID-19, colocam em xeque os entes públicos de como custear as mais variadas necessidades da sociedade, uma vez que impossível negar os acontecimentos: crescimento exponencial das despesas estatais públicas; queda drástica da atividade econômica e consumo; diminuição da arrecadação federal, com consequente redução dos repasses  constitucionais aos Estados e Municípios; diminuição da arrecadação própria de Estados e Municípios; necessidade de medidas estatais para garantia do mínimo existencial da população.

Por outro lado, a carga tributária no Brasil atual representa aproximadamente 33% do PIB. Consequentemente, o momento requer olhares para outras fontes de recursos, sendo as decorrentes destas receitas patrimoniais uma das mais visadas, destacando-se as receitas petrolíferas em grande destaque nos últimos anos no Brasil.

Com os olhares voltados para escassez de recursos, a crise atual exige abordar o Fundo Social do Pré-sal instituído pela Lei n 12.351/10. O fundo público fora idealizado para que 100% dos recursos fosse reserva financeira, como poupança para investimentos em saúde, educação e outras áreas sociais, cujo objeto  “…com a finalidade de constituir fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional, na forma de programas e projetos nas áreas de combate à pobreza e de desenvolvimento: I - da educação;II - da cultura; III - do esporte; IV - da saúde pública; V - da ciência e tecnologia; VI - do meio ambiente; e VII - de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.” ( art. 47).

No artigo 48 o legislador enumerou expressamente que o Fundo Social tem por objeto “…II - oferecer fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional, na forma prevista no art. 47;…”. Não obstante a intenção na criação Fundo Social tenha sido um projeto de longo prazo e intergeracional chega-se ao momento para que a crítica sobre o mal uso das receitas petrolíferas no Brasil seja superada, transformando essa riqueza em desenvolvimento social no enfrentamento da Covid-19.

A utilização dos recursos da ordem de R$ 17 bilhões - saldo atual -  do Fundo Social do pré-sal é medida que se impõe, como salvaguarda da Federação brasileira, em socorro financeiro à União, mas também contemplando Estados e Municípios, pois os instrumentos de compensação para suprir as perdas na arrecadação deste entes federados são praticamente inexistentes.

Sem a ampliação de “recursos institucionais" e a garantia de recursos financeiros para os governos locais, as gestões municipais perdem força prestacional, e o rol de competências compartilhadas do art. 23 da CRFB-88 tornar-se meramente figurativo; impossível de ser exercido de maneira cooperativa entre todos os entes. O pano de fundo que deve nortear a discussão é que o não compartilhamento do Fundo Social do Pré-Sal afronta, inclusive, o conceito de federalismo, flertando com o conceito de estado unitário.

Não se trata de novidade, eis que o PL 10985/2018, no art. 46 da Lei n. 12.351/10, propõe a mudança na destinação das receitas do Fundo Social do pré-sal, direcionando 30% ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios, conforme critérios de distribuição estabelecidos no art. 159 da Constituição Federal.

Todavia, os desavisados, num primeiro momento, poderão negar que a discussão não transita pelo marco teórico do federalismo, contudo, esquecem que descentralização ou centralização de receitas são traços inerentes à centralização ou descentralização de poderes.

O termo cunhado pelo professor Facury Scaff define bem o dilema que possivelmente possa surgir entre União, Estados e Municípios “… trata de uma política de “lençol curto”, na qual mais recursos para um ente federado implica em menos recursos para os demais…”.

Esperançoso de que a harmonia será o tom da orquestra a ser regida pelo Governo Federal, espera-se deste a consciência de que, embora a arrecadação das participações governamentais seja realizada pelo caixa nacional, os problemas batem às portes dos gestores estaduais e municipais.

Na verdade, chegou a hora de inverter o pêndulo contrário à cooperação do pacto federativo brasileiro, deixando no passado a crítica de centralizador, e, superando os acirramentos políticos que criam muros, para que o lençol apesar de curto abrace todos os brasileiros.

[*] É formado em Governança Corporativa e Compliance pelo Insper/SP, bacharel em Direito da Energia, Petróleo e Gás pelo IBDE/SP, mestrando em Regulação, Concorrência e Estado pelo IDP - Instituto Brasiliense de Direito Público -, consultor da FGV Projetos e membro do Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia - IBDE.