OPINIÃO
Por Opinião | 12 de Out de 2017, 19h43
Uma decisão, uma celeuma
*Irene Ferreira
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Uma decisão, uma celeuma

*Enfermeira, advogada, atual vice-presidente do Cofen

No dia 28 do mês passado, o Brasil, através de uma simples decisão judicial, retroagiu no mínimo 20 anos. O veredito proferido pelo juízo da vigésima vara federal de Brasília, mesmo tendo a natureza provisória, tem a capacidade de implodir toda a Política Nacional de Atenção Básica -  PNAB -, instituída em nosso país.

Afinal, muitos dos programas nela contidos possuem como pilar de sustentação a figura do enfermeiro. Agora, enquanto perdurar a maléfica decisão judicial, enfermeiros não poderão mais solicitar exames. 

E, neste sentido, pergunto: como ficará, daqui para frente, o  atendimento de pré-natal, o combate às infecções sexualmente transmissíveis, em especial a sífilis e a AIDS, o combate ao câncer de colo de útero, a  atenção à saúde do homem, entre tantos outros?

Foi um duro golpe que a população mais carente e usuária do SUS recebeu do Conselho Federal de Medicina - CFM. E um golpe muito maior foi o Judiciário ter embarcado nesta, pois, sem sequer ouvir a União, parte processada pelos representantes do CFM, decidiu acatar os argumentos do referido Conselho como válidos. 

A alegação de que não há competência técnica por parte dos enfermeiros para solicitar exames e realizar outros procedimentos jamais deveria ou deve prosperar. Primeiro, porque durante os cinco anos de formação universitária eles estudam profundamente a matéria, exercitam e após formados, mais de 60% deles buscam a pós-graduação, inclusive com recursos próprios, isso de acordo com dados da Pesquisa Perfil da Enfermagem do Brasil realizada pela Fiocruz em parceria com o Cofen e outras entidades da Enfermagem, e segundo, porque basta analisar os indicadores de saúde para perceber diretamente a melhora significativa que houve após a mudança de modelo na política nacional de saúde, ao deixar de ser medicalocêntrica para ser multiprofissional, com a busca de solução para os problemas de saúde em múltiplos saberes.

Ontem, recebi a triste notícia de que o grande médico sergipano Almir Santana teve que suspender as ações de busca ativa de casos de infecções sexualmente transmissíveis na unidade móvel itinerante por causa do impedimento judicial. Afinal, como material humano em sua equipe, os enfermeiros são a maioria esmagadora. 

Muitos enfermeiros em todo o país suspenderam atividades relacionadas a solicitação de exames. E como fica agora toda a população que utiliza o SUS?

Respondo: fica desassistida. 
Desassistida em nome de um plano maligno que afronta o interesse público, que fortalece a reserva de mercado e o corporativismo médico, que trilha a volta ao século XX de forma vergonhosa, pois enquanto os países desenvolvidos e com os melhores indicadores de saúde do mundo respeitam a autonomia profissional e aproveitam as habilidades técnicas e competências científicas de todas as profissões, tendo o usuário como o receptor de tudo que possa ser produzido em seu favor, o Brasil, através de um pequeno grupo, resolve disputar mercado.

Para isso, utiliza-se do Judiciário sem observar dois aspectos importantes: um, que esta disputa insana e descabida apenas trará prejuízo ao cliente/usuário,  e, dois, que pela própria Constituição, a lei do exercício profissional da enfermagem, as resoluções do Conselho Federal de Enfermagem - Cofen - e a PNAB são os normativos autorizadores para desenvolvimento da práxis do enfermeiro. 

O Cofen já ingressou no processo e, através dos seus argumentos, pretende levar ao juízo a verdade real dos fatos, esperando com isso a revogação dessa liminar que poderá levar a saúde brasileira a tempos bem sombrios. Afinal de contas, clara como a luz solar, essa liminar apenas interessa à classe médica e, diga-se de passagem, apenas à parte dela, à corporativista, aquela cuja visão apenas alcança o umbigo, a que pretende povoar ainda mais os consultórios populares, onde a consulta tem preço mais acessível aos que detém menos poder aquisitivo.

Nós enfermeiros  não queremos guerra. Não almejamos ser médicos, não desejamos fazer aquilo que não é de nossa competência. O nosso foco é o cuidado, e as nossas atribuições estão delimitadas em lei e resoluções.

Somos compromissados e contribuímos de forma significativa para a construção da saúde nesse país. Temos história e resolutividade. Não trabalhamos na ilegalidade e nossa responsabilidade faz com que pensemos sempre no usuário, no paciente e no cliente, razão única da nossa existência. Portanto, sem maiores delongas, exigimos respeito.

Aguardaremos a queda da liminar por uma razão de sensatez e, principalmente, por uma questão de justiça.

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