Reportagem Especial

Tatianne Santos Melo

Compartilhar

Juiz de garantias: a polêmica do pacote anticrime

PRAZOS
A nova lei entra em vigor no dia 23 de janeiro de 2020. Neste dia, começam a valer os pontos sancionados. Os pontos vetados, se derrubados pelo Congresso, entram em vigor posteriormente. De acordo com o Palácio do Planalto, os vetos do presidente foram aplicados "por razões de interesse público e inconstitucionalidade".

Foi vetado o dispositivo previsto texto aprovado pelo Congresso que aumentava a pena do crime de homicídio quando o criminoso usa, na ação, arma de fogo de uso restrito ou proibido. A pena atual é de 6 a 20 anos. Pela proposta, passaria para 12 a 30 anos.

Também foi vetado o dispositivo previsto no texto aprovado pelo Congresso que aumentava as penas dos crimes contra a honra – calúnia, difamação, injúria – cometidos na internet. O texto previa que a pena poderia ser aplicada até o triplo “se o crime for cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores”.

REAÇÃO
O presidente do Conselho Nacional de Justiça – CNJ – e do Supremo Tribunal Federal – STF –, Dias Toffoli, determinou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a aplicação do mecanismo de juiz das garantias. O GT se reuniu nesta sexta-feira, 3, pela primeira vez para discutir como será feita a implementação do chamado juiz de garantias.

O CNJ também abriu uma consulta pública sobre o assunto e está recebendo sugestões até dia 10 de janeiro. A ideia do Conselho é a de apresentar formas de regulamentação da questão até meados de janeiro de 2020, antes do prazo para que ela entre em vigor, dia 23.

Além da Associação dos Magistrados do Brasil e do Cidadania já terem ingressado com ações no Supremo Tribunal Federal – STF –, o Podemos e o PSL, ex-legenda do presidente, também já o fizeram. Na ação, o PSL solicita que o STF suspenda liminarmente os trechos da lei que criaram o “juiz de garantias” até que o julgamento seja concluído.

Além disso, há uma expectativa de que ao ministro Luiz Fux, que assumirá a Presidência do STF a partir de 20 de janeiro, suspenda a medida antes de ela entrar em vigor. O que não se sabe é se haverá tempo hábil para isso...

Apesar de opinião contrária de Moro, presidente sancionou pacote com juiz de garantias
Evânio Moura: “a Lei está de parabéns ao instituir um novo Capítulo no Código de Processo Penal e criar a figura do juiz de garantias”

NOVO OLHAR
No entanto, segundo Adelmo, na fase pré-processual, normalmente identificada com o curso do inquérito policial, a presidência do delegado de Polícia não dispensa a atuação controladora do Ministério Púbico e do Poder Judiciário, tudo em nome da proteção jurídica do cidadão.

“E não resta dúvida de que a concentração da atividade jurisdicional investigativa num juiz de garantias permitirá, ao juiz que posteriormente processará e julgará o caso, um novo olhar sobre o fato em questão, enriquecendo-se a dialética processual”, avalia Adelmo.

Além disso, para ele, o juiz de garantias evitará que o julgador do caso não venha a ser a todo instante interrompido por demandas policiais urgentes, que, na visão dele, tumultuam o curso normal dos trabalhos forenses. “Isso implicará indubitavelmente maior eficiência e celeridade processuais tanto na fase investigativa quanto na fase processual propriamente dita”, constata.

O PACOTE
O texto contém parte do pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, e parte do projeto elaborado pela comissão de juristas coordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal - STF. A proposta também conta com alterações promovidas por parlamentares.

O ministro Sérgio Moro se pronunciou sobre a sanção do projeto e, em nota, disse que foi contra a criação do juiz de garantias, mantida por Bolsonaro, mas que o texto final "contém avanços". Além de não constar na proposta de Moro, ele foi contra a inclusão dela no pacote, mas o presidente acolheu.

O texto sancionado, que altera o Código Penal e outras leis de segurança pública, vetou o trecho que trata de homicídio com arma de uso restrito, o que aumentava a pena de crimes cometidos pela internet e o que mudava a regra da progressão de pena.

Adelmo Pelágio: “implicará maior eficiência e celeridade processuais na fase investigativa e na processual”

BENEFÍCIOS
Essa análise positiva, porém, se deve, segundo Leonardo, aos benefícios que a medida acarretará, como a especialização da função pré-processual desenvolvida pelo Judiciário no âmbito criminal e a preservação da imparcialidade do juiz.

Ele também vê a medida como benéfica para a sociedade, por garantir um controle mais efetivo da investigação criminal, zelando pelos direitos do investigado, bem como da própria sociedade, na medida em que terá um juiz concentrado exclusivamente nesta competência. "São notórios os benefícios da especialização em todas as áreas do conhecimento humano", diz.

Ele ressalta que o Conselho Nacional de Justiça, por determinação do seu Presidente, o Ministro Dias Toffolli, já constituiu grupo de trabalho com o intuito de regulamentar o juiz das garantias no âmbito do Poder Judiciário nacional. "Sob a minha ótica, deverão ser respeitadas as especificidades de cada tribunal, com a instituição de múltiplos modelos passíveis de adoção", afirma Leonardo.

APERFEIÇOAMENTO
Adelmo Pelágio de Andrade Filho, vice-presidente jurídico da Associação dos Delegados de Polícia de Sergipe – Adepol/SE – e diretor da Federação Nacional dos Delegados de Polícia – Fendepol –, afirma que o projeto original era bastante questionável e que foi amplamente aperfeiçoado pelo Congresso Nacional. “Com contribuições intelectuais da Adepol/BR e da Fendepol”, defende.

O que, para Adelmo Pelágio, resultou numa lei com contribuições sociais expressivas, que contempla de forma equilibrada a segurança pública e a segurança jurídica, como demanda o Estado Democrático de Direito.

“Onde o sistema processual penal tem de assumir um caráter acusatório. Ou seja, as tarefas de investigar, acusar, defender e julgar têm de ser distribuídas entre atores jurídicos distintamente especializados”, resume o delegado.

Um dos argumentos para o juiz de garantias é uma maior isenção da justiça

"GARANTE NADA"
Um desses partidos que ingressaram com a ação foi o Cidadania, cujo presidente estadual, senador Alessandro Vieira, em entrevista a este Portal semana passada, criticou por enxergar um problema de inconstitucionalidade por origem nela. "Já que deveria ter sido uma proposição do Judiciário", justificou Alessandro.

Além disso, o senador considera que a medida tem um efeito de aplicação muito lento e que, por isso, vai estar concentrada em casos específicos e em comarcas maiores, tendo um condão imediato de impedir que julguem aqueles que estão participando das investigações.

"Ou seja, você tira a Lava Jato do STF do Facchin, a Lava Jato do Rio do Bretas, Flávio Bolsonaro do juiz do Rio de Janeiro. Essa é a razão do juiz de garantias, e não a garantia real de nada", define. Ele acredita que a medida do juiz de garantias não atenta para o fato de o Judiciário não ter cobertura para isso. "Além de não ter recurso para fazer isso, não tem o menor sentido do ponto de vista da aplicação", reitera.

MÉRITO
Juiz titular da 23ª Vara Cível da Comarca de Aracaju, Leonardo Souza Santana Almeida, membro do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe - TRE/SE - e professor efetivo de Direito Processual Civil do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe - UFS -, avalia a instituição do juiz de garantias de forma positiva.

"Tem o mérito de especializar as funções desenvolvidas pelo Judiciário no âmbito da investigação criminal", justifica Leonardo Santana. Apesar disso, ele vê o curto espaço de tempo para a sua implementação, de apenas 30 dias contados da publicação da lei, como um grande problema.

"Como se trata de uma medida que altera a estrutura dos órgãos jurisdicionais de primeira instância, seria importante um período de tempo maior, para que os tribunais pudessem promover as alterações legislativas e administrativas necessárias", explica.

Ministro Sérgio Moro entregou pacote anticrime ao Congresso, que fez alterações

DESNECESSÁRIA
O juiz Roberto Alcântara, vice-presidente da Associação de Magistrados de Sergipe - Amase - reforça que a intenção do legislador foi a de estabelecer que o juiz que participe da fase de investigação, ou seja, pré-processual, não participe da fase processual em si. "Ele não irá proferir a decisão", sintetiza.

Atualmente, segundo Roberto Alcântara, o mesmo juiz participa de ambas as fases. E esse é o argumento principal que embasa a criação da lei: a isenção dos julgamentos. O que, para o juiz, não é fundamento plausível para as mudanças. "A Amase deixa claro que o discurso de que a alteração visa evitar a contaminação do juiz pelo conhecimento dos fatos não corresponde à verdade", garante.

"Todos os juízes e magistrados atuam de forma imparcial e em respeito à legislação, então todos os processos sempre foram tocados por juízes que atuaram dessa forma. Esse discurso de contaminação não cola", acrescenta Roberto Alcântara. Outra preocupação da Amase é com relação aos prazos, já que a lei determinou a aplicação imediata em 30 dias.

APLICAÇÃO
"É muito pouco, principalmente pelo impacto que pode ocasionar", diz Roberto Alcântara. Isso porque, para a implementação, a medida requer a necessidade de os Estados criarem o juízo de garantias através de lei tramitada nas Assembleias Legislativas, com toda uma alteração na lei de organização judiciária.

Para além disso, é preciso estudar e preparar toda a sistemática para receber esse juiz e de como ele vai atuar. "Numa comarca onde só tem um juiz, quem será o de garantias? E na de dois, de três, de muitos, como Aracaju? Também vai mexer no plantão judiciário, porque o que participa de plantão não poderá analisar o processo", reitera.

Para o juiz Roberto Alcântara, a lei também não se importou com o impacto financeiro da aplicação. "Não foi levado em conta, por exemplo, a criação de outras unidades jurisdicionais e isso traz preocupação para a Associação e a sociedade, porque pode ser que a implementação a toque de caixa traga problemas em outras esferas", analisa.

TRANSIÇÃO
O magistrado chama a atenção para o fato de o Estado de Sergipe, através do Tribunal de Justiça - TJ/SE - ter se destacado nacionalmente por executar medidas preparadas, planejadas coerentes, analisando todas as variáveis, o que não é, na opinião dele, o que acontece nesse caso. "A lei não trouxe sequer a regra de transição, para estabelecer como acontecerá essa implantação", critica.

A regra de transição foi estabelecida, por exemplo, na Lei Maria da Penha, que estipulou a criação dos juizados de violência doméstica; além dela, a implementação de Defensorias Públicas também ocorreu de forma mais transparente, seguindo a regra da inconstitucionalidade progressiva.

"A Constituição determina que todas as comarcas tenham, mas enquanto não for possível, a instalação delas nas comarcas vai se alterando a depender da estrutura", compara. Em virtude de todos esses pontos, a Associação dos Magistrados do Brasil já ingressou com ações no Supremo Tribunal Federal - STF - contra a lei, além de dois partidos políticos. "É muito complicado, complexo", define Roberto Alcântara.

Leonardo Santana vê a medida como benéfica para a sociedade, por garantir um controle mais efetivo da investigação

TRÂMITE
"Neste aspecto, a Lei nº. 13.964, de 24.12.2019, está de parabéns ao instituir um novo Capítulo no Código de Processo Penal e criar a figura do Juiz de Garantias", afirma Evânio Moura. Isso porque, para ele, esse mecanismo irá apreciar todos os pedidos cautelares, como interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário, quebra de sigilo fiscal ou telemático, autorização de buscas e apreensões, decretação de prisão preventiva, dentre outros.

E, além disso, também acompanhará o andamento dos inquéritos, como eventuais pedidos de dilação de prazo, novas diligências e arquivamento da investigação policial ou ministerial, realizando as audiências de custódia, arbitrando fiança ou decidindo acerca de eventual prorrogação da prisão preventiva.

"Concluída a fase pré-processual, com o oferecimento da denúncia ou queixa, os autos serão imediatamente remetidos para um outro juiz - nesse caso, o juiz competente titular de uma Comarca ou Vara, dando-se início a fase de instrução e julgamento", explica.

ISENÇÃO
Todo esse novo trâmite, segundo Evânio, não deixa dúvidas de que o juiz de garantias objetiva que as decisões judiciais sejam tomadas com a máxima imparcialidade possível, além de diminuir o excesso de protagonismo do magistrado na colheita da prova e na realização de medidas cautelares. "Evitando-se, também, a inafastável contaminação daquele que teve contato com a prova cautelar, antes de exercido o contraditório efetivo", ressalta.

Por isso, para Evânio Moura, o mecanismo é fundamental para a implantação de um processo penal de garantias, como já acontece em praticamente todos os países da Europa Ocidental - Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, etc - e em vários países da América do Sul, a exemplo do Chile e Uruguai.

"Portanto, não se trata de uma novidade ou invenção brasileira, muito ao contrário, cuida-se de uma medida adotada para implantar um processo penal genuinamente acusatório, na esteira dos preceitos previstos na Constituição Federal de 1988", esclarece o advogado.

CUSTOS
Com relação às muitas críticas que a mudança vem recebendo, principalmente no sentido de a sua implantação implicará em custos elevados, Evânio Moura garante que esse argumento não parece ser absoluto e irrebatível. "Não podemos olvidar que hoje temos um processo praticamente eletrônico, não havendo qualquer custo financeiro na redistribuição dos feitos. Além disso, nunca vi a alegação de que o Poder Judiciário não dispõe de recursos para pagar indenizações a magistrados, algumas delas com cifras milionárias", opina.

"Por último, não vi ninguém preocupado com os custos do aumento do encarceramento que a lei vai gerar ao criar novas faixas para a concessão de progressão de regimes, permitindo que o preso fique muito mais tempo (em alguns casos o dobro ou triplo do que ficava antes) para progredir de regimes. Ninguém falou desse custo, no entanto, estão muito preocupados com os custos do juiz de garantias", completa.

Para ele, isso está ocorrendo porque "o novo sempre desperta alguma desconfiança". "Eu defendo o juiz de garantias e acredito ao final que ele será muito importante para a democracia e para a efetiva implantação de um processo penal genuinamente acusatório, com observância do devido processo legal", assegura.

Roberto Alcântara acredita que a medida desnecessária, já que o Judiciário já atua com imparcialidade

Medida foi acrescentada ao projeto do ministro Sérgio Moro e vem dividindo opiniões e gerando reações

Um dos últimos atos de Bolsonaro em 2019 foi a sanção do pacote anticrime, a fim de endurecer as leis penais e o processo penal, e cuja versão original, elaborada pelo ministro Sérgio Moro, foi acrescida da instituição do juiz de garantias. Sancionado pelo presidente na terça-feira, 24 de dezembro, e publicado na madrugada do dia seguinte no Diário Oficial da União, desde então, a medida vem dividindo opiniões e gerando reações diversas.

O juiz das garantias será o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal, tendo, entre outras competências, a análise da prisão em flagrante, a realização da audiência de custódia, a decisão acerca de requerimentos de prisão provisória, interceptação telefônica, busca e apreensão, quebra de sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônicos e a instauração de incidente de insanidade mental.

Em resumo, ele será responsável por todas as medidas cautelares pleiteadas no curso da investigação criminal, normalmente conduzida por delegado de Polícia, que serão analisadas pelo juiz das garantias, encerrando a competência dele quando do recebimento da denúncia e o envio dos autos para a vara criminal competente. Daí em diante, outro juiz assume o caso, para a instrução e julgamento.

Pacote foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente no fim de 2019