
Maria Valéria Rezende: a freira que desbancou Chico Buarque e Cristóvão Tezza num Jabuti
“Ufa! Cansei você, não foi, Barbie? “Sorry”. Estou cansada também, mas embalei na escrita e vejo que a minha letra começa a recuperar um traço mais regular. Vou me acalmando desse jeito. Foi bom botar pra fora essa coisa toda, dizer pra mim mesma o que tinha vergonha de dizer a qualquer pessoa, vergonha de dizer o que minha filha fez comigo?, ou da minha raiva, do meu próprio egoísmo?, é egoísmo querer ter a própria vida? Diga-me, Barbie, você que nasceu pra ser vestida e despida, manipulada, sentada, levantada, embalada, deitada e abandonada à vontade pelos outros, você é feliz assim?, você é feliz assim?, você não tem vergonha?, eu tenho vergonha de ter cedido, estou lhe dizendo, vergonha” (REZENDE, Maria Valéria. Quarenta Dias. RJ: Objetiva, 2014, p. 42).
Quando ganhou o Jabuti de romance, em 2015, a escritora Maria Valéria Rezende chamou a atenção para algumas manchetes sobre essa vitória. Numa delas temos: “Freira desbanca Chico Buarque e Cristóvão Tezza”. Em uma reportagem, a escritora afirma: “A notícia continua sendo o Chico”. (Folha de S. Paulo, 05.12.2015).
O romance Quarenta dias conta a história da professora aposentada Alice, que deixou toda sua vida para trás, saindo de João Pessoa, na Paraíba, para dar apoio a única filha que morava em Porto Alegre e pretendia ser mãe.
Na bagagem, uma história com chance zero de um final feliz, um caderno velho, amarelado, mas sem uso, com a capa da Barbie, vai ser a sua companhia de jornada e, nas mais de duzentas páginas, do primeiro ao último parágrafo, a boneca, que hoje faz sucesso também no cinema, será requisitada para as confidências, os desesperos, os xingamentos, as comparações: “A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade. Melhor só se for pra você, Barbie, que já tem quase sessenta e fica sempre igual… Vai ver que é por isso que tem tanta velhota por aí vestida de Barbie”. (p. 55). Leiamos...
O belo romance Quarenta dias (Jabuti 2015) nos foi apresentado no último projeto de incentivo à leitura, criado pelo renomado contista sergipano Antonio Carlos Viana, com o nome de O Escritor do Mês, em 2016.
Foi uma parceria do contista com uma livraria local e consistia em escolher o livro de um(a) escritor(a) e abrir as inscrições para que o público comparecesse, sempre em um sábado à tarde pré-agendado e, numa roda de conversa, desse sua impressão sobre a obra lida. Viana falava sobre a autora ou autor escolhido. Em outubro do mesmo ano, o escritor faleceu e o projeto acabou.
Como já disse em textos anteriores, aqui mesmo no JLPolítica & Negócio, incentivar a leitura foi o trabalho de uma vida inteira do professor e escritor Antonio Carlos Viana. Além das aulas de literatura na UFS, ele sempre criava espaços, oficinas, eventos para nos apresentar os aclamados escritores contemporâneos.
No final da década de 1980, junto com Maruze Reis, criou uma oficina no Cultart/UFS e foi ali que tivemos o primeiro contato com a obra de Hilda Hilst. Araripe Coutinho ficou a ponto de enlouquecer e foi a Campinas para conhecer de perto a escritora. Ficaram amigos, moraram juntos, trocaram muitas cartas e dedicatórias.
Foi também nas aulas e eventos de Viana que conhecemos Marcelino Freire, Paulo Henriques Britto, Elvira Vigna; a Valeska de Assis, com o seu dolorido romance A colheita dos dias (1991), resenhado pelo nosso poeta Ronaldson Souza: “O final do romance é o máximo da dramaticidade. Letícia completamente louca, aprisiona-se com os ossos da filha no porão da sede de Passo do Socorro. Na espera de Diogo, herdeiro e novo proprietário”. (Suplemento Cultural do Jornal da Manhã, Aracaju-Se, nº 31, p. 07, 1993).
A Adriana Lunardi com os seus impressionantes contos na antologia As meninas da Torre de Helsinque (1996). Viana trouxe o Luiz Antonio de Assis Brasil, Suzana Vargas, Reinaldo Moraes para oficinas e palestras em Aracaju.
Voltando ao título, a minha Barbie é de papel. A minha admiração pela boneca se deu justamente quando ela passou a ser a “my dear friend” de Alice. Como disse a protagonista dos Quarenta dias, agradeço a Barbie pela “solidariedade silenciosa”.
Agradeço, mais uma vez, e sempre, ao mestre Antonio Carlos Viana por todos os livros, autores e autoras que ele nos apresentou com tanta generosidade e disposição. Que seria de mim, meu Deus…?
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