Articulista
Gustavo Felicíssimo

É poeta, cronista, fundador e editor da Mondrongo. Escreve às terças.

Amigos do Vinícius
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Vinícius de Moraes: por esse, qualquer sargento truculento vira papa

A coisa é toda essa. O problema é que o Vinícius estava lá, naquela praça. Sozinho. Uma estátua. Verdadeiramente uma estátua. Uma mesa de concreto. Banquinhos de concreto. Copo de concreto. O Vinícius concreto.

Nada que o lembrasse de verdade. Salvo o velho farol. A gente estava na praia e o sol se pondo. Mas o Vinícius estava lá, sozinho naquela praça. Bem em frente à sua casa.

Os funcionários do bar se movimentavam para encerrar as atividades naquele dia enquanto o saxofonista tocava a saideira. Tarde em Itapuã. Posto o sol, findada a música. Suspensa a cerveja. Em suspenso ficamos.

Noitinha. Foi quando Juvená teve a ideia. Levamos uísque e gelo. Não demorou e estávamos na praça. Testemunhas de Juvená. Fomos lá fazer companhia ao Vinícius, já que ele estava imóvel.

Levamos também um violão. Estávamos na praça. Que é pública. E nós, republicanos. Cantávamos Vinícius. Recitávamos Vinícius. Lembrávamos as histórias do Vinícius. Como aquela de querer reencarnar com o pau um pouquinho maior.  E a outra em que ele, em Portugal, agradecia vaias como se fossem palmas.

Era o centenário dele. Comemorávamos por ele e com ele a data. Mas, mal havíamos aberto a segunda garrafa e dois policiais em uma moto nos abordaram.

Um deles veio logo nos chamando de arruaceiros. Não, senhor. Somos amigos do Vinícius e estamos aqui fazendo companhia a ele. Aliás, como ele gostaria que fosse. Entende? Vinícius? De Moraes, amigo. O poeta.

O outro, mirando de cima a baixo a figura pré-histórica do Juvená, perguntou-lhe o nome. Gregório de Matos, respondeu. E o seu, cabeludo? Perguntou olhando para mim. Antônio Frederico de Castro Alves. E o seu? Perguntou a outro. Manuel Bandeira. Outro disse chamar-se João Cabral. Os dois últimos apresentaram-se como Oswald e Mário de Andrade. Irmãos? Perguntou o policial. Não. Responderam.

Um deles fez uma ligação e logo apareceu uma viatura. Estamos fodidos, pensei. Embrulhados. Estamos literalmente embrulhados. Fodidos. Embrulhados. É isso.

Pior do que aparecer uma viatura foi a cara de poucos amigos do sargento. Era de estatura baixa e usava bigode. Além disso, era um tanto calvo. A fisionomia sisuda trazia no olhar algo de penoso. 

Aquele seria facilmente um bom personagem para um conto investigativo moderno. Mas era o sargento Sullivan. Quase um sósia do Poe. O Edgar Allan Poe. E a minha sensação é a de que ele estava prestes a nos ferrar.

Eu já me imaginava em uma delegacia, indiciado e prestando depoimento. Falsidade ideológica. Acho que é isso. Tá lá no Código Penal. O sargento conversava em reservado com os dois soldados.

De repente ele quebrou o silêncio, soltando uma enorme gargalhada. Enorme e gostosa gargalhada. Ele estava de frente para nós. E aquela figura sisuda agora me parecia extremamente simpática.

Também gargalhamos. Mas contidamente. Para dentro. E nos entreolhamos. De soslaio. E ele: vão embora, rapazes. Podem ir. Ou continuem aí, como quiserem. A ignorância é mesmo um fardo. Ou salvação. Sei lá, disse o sargento Sullivan, caminhando quase cambaleante em direção a viatura.

 

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Gorete Amorim
Espetacular!!!
Antônio Guedes
Delícia de texto. Eu ri!