Articulista
Gustavo Felicíssimo

É poeta, cronista, fundador e editor da Mondrongo. Escreve às terças.

Até sempre, companheiro!
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"Dava a impressão de que estava sempre a refletir sobre algum aspecto importante que a leitura lhe revelava"

Muller não era o que podemos chamar de mendigo. Ele não mendigava. Não sei onde dormia, se ao menos tinha moradia ou família na cidade, mas o certo é que se encontrava todos os dias no mesmo banco da mesma praça tão logo o dia se anunciava.

Eu passava por ele cotidianamente, na volta da caminhada matinal ou a caminho do trabalho. Chamava-me a atenção a longa barba branca, a roupa puída, o jornal amassado debaixo do braço e o forte sotaque estrangeiro. A julgar pelo nome e pela fala, parecia alemão.

Admirava-me que um homem aparentemente marginalizado, que estava vivendo, portanto, em condições limite, trouxesse sempre consigo algum livro, e sempre um clássico da literatura universal. E a Bíblia.

Comumente o via lendo. Cabeça baixa, mão no queixo, circunspecto. Dava a impressão de que estava sempre a refletir sobre algum aspecto importante que a leitura lhe revelava. Salvo, claro, quando alguém se sentava ao seu lado, algumas vezes mendicantes, outras não.

O conheci em uma das ocasiões em que passava pela praça e me sentei ao seu lado para tirar uma folga à sombra de generosas amendoeiras.

Não demorou muito e ele me olhou de soslaio, me deu um “olá” com a voz tímida, ao que eu retribuí sem maior ânimo. Percebi que além da roupa em péssimo estado, ele também tinha os sapatos furados.

Mas percebi, sobretudo, que tinha em mãos um exemplar de “Fausto”, do Goethe, uma edição em alemão, toda sublinhada e comentada.

Como também não sou de perder tempo, trazia comigo um estudo do Ivo Barroso sobre as traduções de “O Corvo”, do Edgar Allan Poe, obra sobre a qual ele teceu diversos comentários que demonstravam muita argúcia, inclusive sobre a vida do autor, a respeito de quem passamos um tempo considerável conversando.

Encantou-me aquela figura, de cuja vida nunca procurei saber maiores detalhes: de onde vinha? O que fazia ali? Certo mesmo é que passei a frequentar com mais assiduidade aquela praça, sempre à procura de um bate-papo mais amiúde sobre livros e escritores.

E, talvez por misericórdia, nos nossos encontros sempre lhe deixava algum dinheiro trocado. O que nunca recusou. Afinal, era certo para mim que ele passava por muitas dificuldades.

Um dia, cansado de alguns importunos e seriamente irritado com problemas profissionais, fui dar umas voltas para esfriar a cabeça e fazer algumas reflexões. Dei com minhas preocupações na praça e logo avistei o meu novo amigo, quase um daqueles personagens insólitos saídos de um livro de Adonias Filho.

Notei que estava mais magro que de costume, mas sereno como sempre. Havia chovido. Vestia a mesma roupa puída de sempre e o mesmo sapato furado. Lhe estendi a mão e o cumprimentei:

- Como vai?

Ao que respondeu:

- Melhor do que mereço!

Tive um choque. Silenciei. A tal resposta ecoava por todo o meu corpo, fazendo-me estremecer. E de repente, como o fruto benigno de uma iluminação, tudo o que atendia a respeito dos termos “dificuldade” e “problema” passou a não fazer mais sentido algum.

Aquele homem, naquela condição, aparentemente desamparado, me dizendo aquelas palavras resignadamente, me faz refletir até hoje.

Fato é que tive um espanto insondável, o que me fez, a partir de então, olhar para todo tipo de perturbação sem lhe dar a atenção reclamada.

Ao fim da nossa conversa daquele dia, que foi o último em que o vi, ele, notando que me encontrava angustiado, lembrou que o Padre Antônio Vieira, no Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, alerta que “a Bíblia nos traz uma verdade que nenhum cientista, nenhum sábio, nenhum artista e nenhuma ciência pode desmentir: “Tu és pó e ao pó voltarás”.

E mais me disse o Muller:

- Acalma o teu coração, pois nem toda preocupação deve ser tão inquietante assim.  

Ouvindo isso, eu me levantei, estendi-lhe a mão e me despedi após mirar fundo em seus olhos.  

- Até sempre, companheiro! Ele disse.

- Até. Respondi refeito.

E segui. Olhei ainda duas ou três vezes em sua direção até perdê-lo completamente de vista, enquanto aquelas palavras faziam eco na minha memória. E continuam...

 

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