Articulista
Gustavo Felicíssimo

É poeta, cronista, fundador e editor da Mondrongo. Escreve às terças.

E lá se foi João Ubaldo Ribeiro
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João Ubaldo Ribeiro: todo mundo tem um dom e ninguém deve cometer o pecado de trai-lo

Todo mundo tem um dom qualquer, ele dizia, e o grande pecado que se pode cometer nessa vida é o de trair esse dom. Acho que João Ubaldo Ribeiro chegou a essa conclusão com um empurrão de Jorge Amado.

Explico. Não sei ao certo em que local do mundo se encontravam, mas o correto é dizer que João e Jorge estavam no saguão de um hotel e preenchiam, como de praxe, uma ficha cadastral. No campo dedicado à profissão, João grafou o termo “jornalista”, no que foi repelido pelo amigo que lhe exigia a substituição do termo por “escritor”, e dizia: Escritor, é isso que você é!

Um escritor, aliás, que soube nos mostrar um país verdadeiro, feito de gente comum, como os seus convivas da Ilha de Itaparica, com suas falas e trejeitos, muitas vezes tornados personagens de suas histórias, que exibiu o que de melhor e mais autêntico tem a nossa gente.

Em Viva o Povo Brasileiro, por exemplo, ele nos trouxe a sensação de sermos herdeiros de uma tradição cultural fora do comum, pois edificada em nossa própria história. Por coincidência, poucos dias antes da sua morte eu havia relido o texto “O santo que não acreditava em Deus”, inserido no livro Já podeis da pátria filhos, e revisto o filme Deus é brasileiro, dirigido por Cacá Diegues, para a escrita de uma análise comparativa entre o texto que deu origem ao filme e o filme para uma revista.

Então veio a notícia indesejada, fato que me fez lembrar inevitavelmente da última vez em que estive na festa do seu aniversário, em Itaparica, em 2010. Estava na companhia do poeta Bernardo Linhares, então vizinho de João.

Encontrávamo-nos no Bar do Capitão quando ele chegou acompanhado por uma filha. Bebíamos, mas João estava na fase do guaraná. A partir de certa hora, a filha passou a insistir a todo instante para que voltassem à casa, mas João reiterava pedidos por paciência e uns minutinhos a mais. E assim, outro dedo de prosa.

O papo, como de costume, suscitava em nós largas gargalhadas e fazia a alegria dos que se encontravam próximos. O motivo da pilhéria foi o resultado da eleição para Miss Gay, que acabara de acontecer e que elegeu como rainha uma figura muito sem graça, contrariando a opinião do público e em especial a de Bernardo Linhares, o rei da galhofa, que, insatisfeito com o pleito, a todo momento recitava epigramas contra a comissão julgadora e contra o pobre do Sapoti, organizador do evento e agitador cultural durante os verões itaparicanos.

Não demorou muito e estávamos descendo o cacete nos escritores que vivem de afagar o ego alheio e de conchavos escusos. Tudo em nome da boa literatura. E Bernardo, como sempre, recitando epigramas contra os seus eleitos. Trago um deles até hoje na memória:

Desde que penetrou
lá na velha academia,
a cadeira que ocupou
não é mais vaga, é vazia.

João, que era compadre de um dos maiores desbocados da Bahia, o mestre Ildásio Tavares, adorava. Quando o papo pendeu pro campo minado da política, ele encontrou a deixa que precisava para ceder aos apelos da filha, não sem antes deixar-nos uma anedota digna da sua verve cômica.

Debruçado sobre a mesa e com um tom de voz mais baixo que de costume, gesticulava e pronunciava um calão monossilábico indicando o orifício em que Lula havia perdido, segundo ele, o dedo mindinho. Não houve santo que tivesse ficado indiferente.

E lá se foi João Ubaldo Ribeiro. Acompanhei seus passos desassossegados até o perder de vista, quando virou em uma esquina, sem imaginar que seria aquela a última vez que estaria na sua companhia.

 

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