Articulista
Gustavo Felicíssimo

É poeta, cronista, fundador e editor da Mondrongo. Escreve às terças.

João Filho: estrada, poesia e reminiscências
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“A dimensão necessária”, do chorão João Filho, pela Mondrongo, e Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional

Sinto muita falta de Salvador, mas não da cidade tísica, das suas praias cada vez mais insípidas, dos seus viadutos, avenidas, edifícios, alphavilles e alphavellas. De um lado, a tentativa de se criar artificialmente um bairro de grandes proporções para os mais abastados, e do outro a pobreza em expansão exponencial. E asfalto, muito asfalto.

A falta que sinto da capital baiana está ligada a tudo o que é idílico e apenas estando lá a gente consegue perceber com mais rigor a metafísica que impera em alguns locais da cidade, que parecem dar de ombros para o avanço da urbanização que busca mascarar as suas rugas, uma grande capital onde ainda é possível encontrar pessoas penduradas nas janelas vendo a vida ir passando feito uma locomotiva que não passa nunca, simplesmente.

Embora não pareça, há, ainda, alguns pontos da Barra, tão esteticamente higienizada, que são assim. Como aquele espaço ao redor do Jardim Brasil, onde residiu o casal de amigos João Filho e Állex Leilla. Eles, que são oriundos de Bom Jesus da Lapa, encontraram naquele cantinho da cidade certo bucolismo característico do interior.

E mais: eles encontraram um apartamento amplo, que mais parece uma casa, onde o ponto alto é a varanda de frente para imensas amendoeiras, em uma rua sem saída, onde habitam diversos tipos de pássaros.

Hoje eles residem na Graça, mas ainda tenho saudade das longas horas de conversas despretensiosas na varanda da casa da Barra, o bule de café sobre a mesinha, a gente observando as pessoas indo e vindo infinitamente, o João pitando o seu cigarrinho de palha e a Állex escutando a tudo atentamente, dando uns pitacos aqui, outros acolá. Mas o que desconfio mesmo é que ela fica anotando as partes mais pitorescas das nossas conversas para metê-las em algum trecho dos seus longos romances.

Foi naquela varanda que surgiu, certa feita, a ideia de irmos à Lapa lançar o vitorioso livro de poesia“A dimensão necessária”, do João Filho. Tudo arrumado, metemo-nos no carro bem cedinho, dispostos a enfrentar os quase oitocentos quilômetros entre Salvadolores e a cidade natal dos meus amigos.

A causa era justa. E eu tinha comigo que a distância não era tanta assim. Mas me avisara a Állex que a viagem não seria tão simples, ainda mais naquele paliozinho meio desgastado que eu tinha à época.

Foram quase doze horas de viagem em uma estrada feita de retas imensas e uma paisagem que muda muito pouco, salvo quando passamos por uma localidade em que existem enormes torres eólicas em uma cadeia de montanhas, e suas hélices girando, girando, girando em uma imagem que nos faz lembrar a passagem do Quixote e os moinhos de vento, a metáfora perfeita da loucura, o cavaleiro investindo sua lança contra as imensas pás rodantes de um moinho, tendo como testemunha o pasmado Sancho Pança que tenta, em vão, dissuadi-lo.

Nesse ponto, um policial federal nos parou para uma inspeção rotineira. Baixei os vidros do carro e tratei logo de sacar os documentos. De posse deles, o policial fez a clássica pergunta: Está vindo de onde, está indo pra onde? Em seguida, perguntou o que havia no porta-malas.

Expliquei que todos ali eram escritores e que tínhamos livros, muitos livros. Por favor, abra o porta-malas, ele ordenou. Então, o olhar de espanto do policial e alguns segundos se seguiram em silêncio. Ele me devolveu os documentos e disse: É, preciso atualizar as minhas leituras. Retomamos a viagem e caímos na risada. Obviamente.

Mais adiante, no início da noite, com Bom Jesus da Lapa quase à vista, paramos para um lanche. Essa parada ocorreu em Paratinga, foi quando Állex fez uma observação digna da extraordinária ficcionista que ela é. Contou-nos que quando criança ela achava que aquela cidade ficava literalmente no fim do mundo.

No entanto, calhou de um dia ela fazer a sua primeira viagem a Salvador, e no regresso o mesmo ponto de parada em que nos encontrávamos naquele instante, foi quando ela descobre que Bom Jesus da Lapa, para quem vem da capital, se encontra após aquele lugar que para a menina, ainda chamada de Alessandra, era nada mais nada menos que o fim do mundo, o lugar mais distante possível de qualquer ponto geográfico do planeta.

Essa viagem, e uma outra que fizemos pro Recife, também de carro, tudo pelo motivo de que eu odeio avião, é lembrada entre nós com alguma ternura. Ainda mais depois do que ocorreu na rádio, onde dávamos entrevista sobre o evento para o radialista, sambista e saudoso Jeromão, amigo de infância do João Filho, que, a certa altura resolve pedir à Állex que fizesse uma pergunta pro marido e poeta, ao que ela sem pestanejar me deu uma cutucada e largou essa: João, o que significa para você retornar a Bom Jesus da Lapa para lançar um livro?

Pronto. Acabou o homem. João tentou articular alguma coisa, mas não conseguiu, caiu em prantos e o radialista foi obrigado a chamar os comerciais. Refeito, o poeta respondeu lindamente à pergunta, mas até hoje não conseguiu se desvencilhar da nossa pilhéria.

Assim como o João, eu também publiquei um livro que evoca de maneira profunda as minhas reminiscências, muito embora “A dimensão necessária” não seja exatamente isso, como é, por exemplo, outro livro do meu amigo, que é o “Auto da Romaria”, mas nele há sim diversas passagens, como o poema O riacho, que evoca sua relação mais profunda com o seu lugar, e por isso eu entendo o seu choro compulsivo.

E compreendo. Pois viver fora de sua terra natal, longe da convivência cotidiana dos seus, é uma espécie de exílio. E como somos dotados de memória, ela termina por ser a composição fundamental do nosso ser. E mais eu não vou dizer, senão essa crônica não termina.

Certo mesmo é que corria o ano de 2014. E no ano seguinte veio o prêmio mais que justo para João Filho, exatamente esse livro de poesia, e de tão belas lembranças, “A dimensão necessária”, por mim publicado sob o selo da Mondrongo, recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, eleito o melhor livro de poesia no ano de publicação. João e Állex se encontravam em Buenos Aires e me ligaram imediatamente após saberem da notícia. Não esqueço esse gesto de consideração.  

E para finalizar essa croniquinha, deixo aqui o texto que escrevi para uma das orelhas de “A dimensão necessária”.

“À poesia contida neste volume, apenas uma palavra encontro que seja suficientemente ampla e exata para defini-la: transcendência. “A dimensão necessária”, com sua dosagem metafísica (existencial), penetra levemente na nossa sensibilidade com a capacidade de amplificar a apreensão do mundo e da existência. Poesia inconteste, urdida no mistério absoluto, mas que não deixa de se sujar de vida, tal qual a revelação do poeta sórdido que Manuel Bandeira apresentou. E a vida é como a máxima heraclitiana sobre o rio: nunca nele nos banhamos duas vezes.

Já a poesia de João Filho é qual um voo no vazio e no pleno, uma voz universal que flui constantemente de maneira opulenta, pois fruto de uma apurada vivência e consciência literária, penetrando nos mistérios mais sutis e mais caros para toda a humanidade, uma poesia muito acima do que nos vem sendo apresentada pela maioria esmagadora dos poetas da nossa (por enquanto) frágil geração”.

 

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Telma
Ah, delícia de croniquinha, seu Gustavo
Paulo Roberto (Robert Portoquá)
Que delícia de crônica. Clássica e ao mesmo tempo contemporânea. Fluida como que ...