
Belchior: tronco de música boa e participativa
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes completaria 77 anos nessa quinta-feira, 26 de outubro. Nascido em Sobral, no Ceará, desde cedo sua vida foi preenchida pela música. Logo aprendeu instrumentos e partituras.
Em 1962 foi estudar filosofia em Fortaleza. Lá deu os primeiros passos como músico. Posteriormente, internou-se num seminário, aprendendo latim, italiano e canto com frades da Ordem Menor dos Capuchinhos do Mosteiro Jesuíta de Guaramiranga, onde se encontrou com a introspecção silenciosa.
Conhecido como Frei Sobral, o jovem ali já destacou por seus improvisos e gosto pela literatura original. Ao voltar para Fortaleza, em 1968, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, porém largou o curso em 1971 e abraçou a música. Nesse projeto, participou de eclético grupo da sua geração, o Pessoal do Ceará, com Amelinha, Fagner, Ednardo e outros. Todavia, não os seguiu, por não ver sentido no determinismo geográfico.
Foi para o Rio de Janeiro e lá conquistou primeiro lugar no IV Festival Universitário da MPB, com a música “Na Hora do Almoço”. Seguiu para São Paulo compondo canções para trilhas, até emplacar o primeiro sucesso nacional, “Mucuripe”, regravada por Elis Regina, e nascia alie a parceria de sucesso.
Belchior cantou para todos e em qualquer lugar, o que lhe abriu portas. Lançou o primeiro álbum “Mote e Glosa” em 1974, brindando-nos com canções como “A Palo Seco” e “Todo Sujo de Batom”. Mas foi em 1976, com o segundo disco e obra-prima, “Alucinação”, que se firmou como revelação da MPB e estourou com hits como “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, “Sujeito de Sorte”, “Velha Roupa Colorida” e ‘Como Nossos Pais’, estas duas últimas regravadas pela pujante voz de Elis.
Daí em diante, Belchior produziu mais de 200 canções em 14 álbuns e foram regravadas mais de 300 vezes ao longo de 25 anos de carreira, sempre com letras que trazem à tona temáticas sobre arte, filosofia, literatura e, claro, política e o homem comum e seus dramas.
Devido aos ecos dylanescos, foi considerado o Bob Dylan brasileiro. A propósito, em 1990 Gilberto Gil promoveu o encontro inusitado de Belchior com Dylan, durante seu primeiro show no Brasil, no Hollywood Rock, oportunidade em que Gil o apresentou com a seguinte frase: “Dylan, esse é Belchior o Bob brasileiro”, que respondeu a Belchior: “É mais provável que eu seja você na América. Quero ouvir seu álbum. Trouxe um?”.
De fato, Belchior tinha características que o aproximavam do estilo Dylan de compor e cantar. Letras longas e profundas, entoadas com um cantar grave e falado, sempre trazendo aspectos desconcertantes da vida, como a angústia, a solidão, mas também alvissareiros como a mudança e a liberdade, alimentadas pelo esperançar por novos tempos.
O álbum Alucinação é prova disso, marcado pela apreensiva esperança com o futuro do Brasil, então amordaçado pela ditadura militar. Não aderiu a projetos políticos, mas cantou o idealismo de sua época com reflexões bem atuais. Admitia ter sido influenciado pelos tropicalistas, mas acreditava que tinha que superar o que os baianos fizeram.
Reportado como boa praça, de sorriso largo e olhar misterioso, Belchior era boêmio, intelectual, gostava da noite, de fumar cachimbo, conversar e beber bons vinhos, ouvindo boa música. Com vocação latino-americana, preferia o tango argentino ao blues americano. Traduzia a concretude da vida, os delírios com experiência real, as agonias do ser, os dilemas éticos, as desigualdades sociais, aprisionamentos e a libertação pela arte, utilizando-se da figura do “Cidadão Comum”, como espécie de alter ego do cantor.
Em protesto, bradou que seu canto torto cortasse a carne e negou cantar como convinha. Não cedeu a pressões. Acreditou na força revolucionária da música, fez-se cronista parabólico da história. Com intransigência erudita e popular, caminhou seu caminho, cantou sua rebeldia.
Sonhou acordado com o anarquismo como experiência desordenadora do status quo e criadora de um movimento livre não caudatário da política institucional. Ao mesmo tempo, deixou a mais emblemática mensagem ao declarar que “Amar e mudar as coisas me interessa mais”. Foi além, e com o coração selvagem escreveu belas declarações de amor.
No último disco autoral, “Bahiuno” - mistura de baiano - referência paulistana aos nordestinos - com uno - povo asiático que rumou à Europa em busca de territórios férteis -, gravado em 1993, em 16 faixas inéditas utilizou arranjos fortes e tom sério para reafirmar ideais.
Manifestou resignação com a problemática brasileira e alertou para o avanço extremista de reacionários ideológicos e religiosos. Os discos posteriores foram coletâneas, até a releitura, em voz e violões, quando, em 1999, entrou no estúdio e de lá saiu “Um concerto a palo seco”.
Antes do sumiço, Belchior estava esquecido pelo mainstream, interrompera a carreira, inexplicavelmente largou tudo e rumou para Santa Cruz do Sul, onde viveu de favores de fãs, talvez fugindo de si, mas perseguido pela envergadura do seu eu. Versões tentam explicar seu “dropout”. Morreu, em 30 de abril de 2017, aos 70 anos, deixando vasto legado que foi abraçado por nova geração de fãs póstumos que encontraram em suas canções profundas mensagens atuais. Belchior vive!
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