
Rui Barbosa: figura bem além do seu tempo
No último dia 5 deste novembro, o Brasil celebrou o 174º aniversário do maior dentre os gigantes juristas e dos mais emblemáticos pensadores nacionais. Falo do franzino baiano Rui Barbosa. Polímata de escol, destacou-se em tudo que se envolvera - advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador - até falecer, aos 74 anos. Mas nem a morte dele parou seu agigantamento.
A propósito, aviso que em 28 de fevereiro de 2023 publiquei nesta coluna artigo intitulado “Lembremos o centenário de morte de Rui Barbosa, o jurista que deu vida à dignidade a diversas esferas brasileiras”.
Neste artigo, pretendo uma abordagem diferente – provocativa - sobre a memória ruiana e sua apropriação ideológica pelas mais diversas correntes políticas e jurídicas em disputa em suas temporalidades.
Em suma, por que esse notável brasileiro sempre ocupa o espaço mítico infalível na memória e costuma ser invocado para dar resposta a problemas atuais ou do presente passado?
Por oportuno, lembrei do polímata lagartense Sylvio Romero que, em sua obra “Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo na República do Brasil”, já advertia, na transição do século XIX para o XX, que “as ideias, as doutrinas, os conceitos e as opiniões não cairiam do céu ou brotariam do chão e sim sairiam do cérebro e achariam asilo nos corações”. Sem dúvida, muitas ideias e ideais saíram do privilegiado cérebro do gênio Rui Barbosa e se asilaram nos corações de pessoas ao longo de gerações.
Qual seria esse segredo? Qual a fórmula mágica de encantamento o doutor Rui usou para nos enfeitiçar com sua magnitude impressionante?
Confesso-me fã desse brasileiro cabeçudo, talvez influenciado (in)conscientemente pela construção mítica desta personalidade, no entanto, o magnetismo que me atrai ao centro do personagem não é a sua festejada infalibilidade tradicional.
Ao contrário, é a nítida percepção de que o célebre baiano, embora diversas vezes transportado para o futuro, foi homem do seu tempo, marcado não só pela distinta mente brilhante, disposição implacável e coragem invejável, mas também por ambiguidades, contradições e paradoxos, que nos remetem à sua humanidade e não à sua deificação.
Penso que compreender a essência ruiana como um notável ser humano de sua época seja a saída apaixonante para armadilhas oportunistas da mitificação e anacronismo. Há pouco espaço para questionamento do destaque e da importância do pensamento e atuação de Rui Barbosa no desenvolvimento da política, do direito, da diplomacia, da liberdade e da imprensa no Brasil. Antônimo frontal da ignorância, o culto à grandeza da sua obra é quase uma unanimidade.
Foi um autêntico liberal num ambiente conservador. Num país tradicionalmente monárquico, nobiliárquico, colonial e escravocrata, marcado pelo patriarcado, patronato, mandonismo, patrimonialismo, clientelismo e coronelismo, ousou pensar e agir diferente.
Desafiou dogmas e paradigmas, lutou por transformações impensáveis, defendeu liberdades e falou para o mundo. Tornou-se o exemplo perfeito de cidadão que se traduziu numa personalidade erudita, intelectual, culta, corajosa, ética, justa e moralista, e isso não passaria desapercebido pelos donos de poder.
De fato, uma vida parece pouco para tanto. Contudo, a construção da sua sombra pós-morte foi ainda maior. No curso da história, frequentemente Rui foi utilizado para a formação de almas na tentativa de forjar tradições parar criar imaginários de legitimações, como a da recém-nascida República, combate a corrupção, importância da igreja e da religião católica e até das forças armadas, de quem foi crítico contundente. O interessante é que essa apropriação e desvirtuamento foi muito bem operada, na medida em que o seu vulto era cultuado, com oscilações propositais entre lembranças e esquecimentos, que permitiram pinçar passagens pontuais e descontextualizadas de suas profundas reflexões sobre os mais diversos temas.
Essa tarefa estratégica contou com a incônscia ajuda do doutor Rui, que nos deixou homérico e prolixo legado condensado em vasta obra, sem um livro basilar do seu pensamento. Somente a coleção “Obras Completas de Rui Barbosa” está dividida em 50 volumes e 137 tomos. Talvez isso explique o porquê de ser pouco lido a fundo, deixando espaço para a fragmentação a ponto de citações de suas frases se tornarem demonstração estética de sabedoria.
Rui é dotado de uma vasta memória biográfica - não me recordo de outro brasileiro que tenha sido tão biografado - que traz contextos e abordagens diversas. No entanto, algumas trazem vieses convergentes que buscam ilustrar Rui como um herói exemplar liberal, erudito e legalista, apagando ou disfarçando seus ferrenhos posicionamentos críticos a setores poderosos do patronato que comandavam o status quo, como a igreja, a nobreza e os militares, bem como a defesa intransigente de temas revolucionários como igualdade racial e de gênero.
A depender da intenção e do interesse, há sim articulada manobra seletiva na escolha de quais temas serão enfatizados e enaltecidos em sua história de vida como cidadão modelo a inspirar seus pares. Vez por outra são feitas comparações entre Barbosa e famosas personalidades mundiais que buscam, nas entrelinhas, expor similitudes para vincular de maneira oportunista a figuras católicas heterodoxas de destaque na história mundial, com intuito de esconder o suposto ateísmo do qual fora maquiavelicamente acusado quando candidato a presidente da República.
Conservadores, reacionários, ditadores, democratas, liberais e progressistas todos se valeram do legado ruiano em determinada situação. Essa ductilidade, longe de pôr em xeque seu espólio, só reafirma a sua gigantesca dimensão como homem público livre e ativamente engajado.
Quanto ao uso oportunista do seu legado, se quiser conhecer e se apaixonar, recomendo retirar água fresca do poço e beber da fonte natural a tomar água gelada oferecida por outrem.
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