
Marcella Hazan foi uma das grandes pioneiras a levar a autêntica culinária italiana para vários países nas mais diversas regiões do mundo
“Para compor um cardápio, as diretrizes que devemos seguir podem ser traçadas a partir do simples bom senso”
Marcella Hazan
O conjunto de princípios a partir dos quais se pode fundar ou deduzir um sistema, um agrupamento de conhecimentos, também é uma condição precípua do campo culinário. Tanto mais quando este conversa bem com as demais ciências, pois, no mínimo, devemos levar em conta, quando na cozinha, mesmo que não seja em nome de um complexo arcabouço teórico, que estamos a lidar com representações da química, da biologia, da física.
Sem contar a indispensável logística. E isto ao nível, pelo menos, do essencial. Se este introito está a soar algo lógico-filosófico, a coisa se dá de caso pensado. Não obstante o dia-a-dia de forno e fogão seja levado com elegância e competência por milhares de pessoas, homens e mulheres, as quais, muitas das vezes, mal sabem escrever o próprio nome, a abordagem epistemológica também tem seu lugar.
Não, de maneira alguma, para tripudiar - seria estúpido, contraproducente, imoral - sobre a dita “mentalidade simples do povo”, esta abstração a dizer nada com coisa nenhuma. Senão para o exercício salutar, estético, do pensar, de maneira mais ampla, a arte fundamental para a sobrevivência e para a boa vivência, vale dizer, a atividade revestida de caráter básico e determinante, à qual podemos e devemos agregar valor sob a ótica do Belo: o cozinhar.
Com estes olhos e mente é que leio livros dedicados à culinária. Isto é, do que está diretamente relacionado com o compartimento de uma residência, geralmente - embora cada vez mais não tanto - afastado da parte social e equipado com objetos próprios para preparação de alimentos, a cozinha.
O espaço ocupado nas estantes da minha biblioteca pelos livros dedicados à preparação de alimentos através, no mais das vezes, da ação do fogo, é tão amplo quanto o reservado à filosofia, à literatura, às belas-artes, à história...
Leio-os não só como livros de consulta, mas, sim, a depender da importância, da forma textual adotada, como verdadeiros épicos. “Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica”, da cozinheira, doutora em Ciências Naturais e em Biologia pela Universidade de Ferrara, Marcella Hazan, é classificado, por mim, como de intensidade e grandeza fora do comum.
Um dos aspectos mais tristes, e o mais certo de ocorrer, é a morte. Marcella Hazan, vinda ao mundo em 1924, decidiu por ir cozinhar para a Corte Celeste em 2013, aos 89 anos. Viveu uma vida justa e boa, como diria o índio yaqui, de Sonora, Dom Juan Matus, ao aprendiz de feiticeiro Carlos Castañeda. Se, de fato, Dom Juan existiu, ou foi apenas uma elaboradíssima criação literária de Castañeda, não vem ao caso.
Bem, você leitor, já tomado de impaciência, clamará: ô articulista, estás qual - nas palavras de Adso de Melk, discípulo de Guilherme de Baskerville - “monge senescente a demorar-te demasiado nos marginalia”. E quanto ao livro? Oh, sim, respondo. Peço que prelevem a irritante digressão.
“Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana”, não se limita à modesta empreitada de oferecer quase 500 receitas, inconfundivelmente assinadas por Hazan. Proporciona, também, ao leitor, uma agradável e deliciosa viagem pelas regiões do país em forma de bota que se projeta com uma longa e privilegiada costa mediterrânea.
A figura de Marcella Hazan me fascinou desde o primeiro momento em que tive ciência da sua existência e do seu papel no mundo culinário. Um dos pontos de identificação foi o de ela ser, como eu, fumante. Tinha preferência pelo Marlboro Light, e demonstrava franco prazer em baforá-lo. Sou mais afeito aos charutos e fumos para cachimbo.
Quanto a beber, não era grande fã de vinhos, embora os conhecesse bem. Preferia Jack Daniels com gelo. No caso deste borra-papéis, aqui, bebo à larga dos dois, sempre com cuidado de não o fazer ao mesmo tempo. Passo mal e fico bêbedo. Em separado, em dias distintos, a depender do que pede a ocasião, uma garrafa apenas não basta. E, sim, estou a comentar da pessoa mesma de Hazan. Estejam certos de que não há, sob nenhuma hipótese, desassociá-la da sua produção literária/culinária.
Outro ponto foi, ao longo das leituras de seus livros e da respectiva fortuna crítica, saber que um sistema filosófico hazaniano foi considerado: sua perspectiva no que diz respeito à culinária italiana da qual era defensora de modo estrito, e não raro julgado excessivo, de uma tradição, adversária ferrenha de modificações gratuitas dos ‘modos de fazer’.
Não tolerava alterações sem que estas pudessem ser devidamente sustentadas, da ortodoxia. Uma conservadora par excellence. Decerto outro ponto que me levou à admiração apaixonada desta extraordinária mulher. Admito, pois, é fato que, apesar de sua abordagem purista e de ser italiana, todos os seus livros foram escritos em inglês. Hazan sabia que, escritos nesse idioma, suas ideias teriam muito mais alcance.
Uma observação quase que constante em sua obra: “não existe comida “italiana”, haja visto que a Itália é um país de regiões bem específicas, notadamente quanto à culinária. Porém, ela se manteve fiel ao princípio italiano da simplicidade, da receita descomplicada. Em “Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica”, Hazan alerta que “o objetivo do livro é o de ser usado na cozinha como um guia, um manual básico para cozinheiros de todos os níveis, dos iniciantes aos mais especializados”.
Quando Hazan afirma que a Itália é “um país de regiões” - em termos gerais, penso, esta é a condição da maior parte dos países do mundo -, ela esclarece que “ao se perguntar a um italiano sobre a cozinha italiana, a depender da pessoa a quem a pergunta foi dirigida, a resposta vai remeter à cozinha bolonhesa, veneziana, romana, milanesa ou toscana, piemontesa, siciliana ou napolitana. A cozinha italiana é, na verdade, uma cozinha de regiões que precedem no tempo à própria nação italiana”.
“Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica” é estruturado de forma ao mesmo tempo rigorosa e leve. Instrutivo, técnico e disciplinado é, também, prazeroso, divertido, reflexivo. Desde “Onde se Inicia o Sabor” até “À Mesa”, primeira e última seções do livro, o leitor passeará por entradas, sopas, massas, peixes, crustáceos, moluscos, patos, coelhos, pães e tantas outras possibilidades. São 678 páginas, sem que se inclua o generoso índice remissivo de informação cuidadosa, pragmática, a evitar a precipitação, a impulsividade. O ritmo é afinado e permanente.
Leiam, ousem saber e pôr em prática as propostas culinárias de Marcella Hazan. Festejem e se deliciem. Bon appétit e Santé.
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