Articulista
Leo Mittaraquis

É escritor e apaixonado pela arte culinária. Escreve às terças.

O Cálice Sagrado e a diabrete
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“Mulher com vinho tinto”, tela de Pat Kelley, 2018: elegância, mistério, melancolia e desejo, tudo a nos lembrar que a linha divisória entre o caricato e o estiloso é frágil e tênue

“A degustação de vinhos é um momento especial. Não se trata simplesmente de beber vinho, mas de combinar um tête à tête com a garrafa”

Corentin Marouby

A jantar, ao lado da amada radiopatroa, num restaurante de hagiológico nome, onde o cliente pode servir-se de vinho diretamente no dispenser, assistimos a uma infeliz encher a taça quase à borda. 


450ml, portanto, balouçaram perigosamente - no que toca dar um banho em pessoas próximas - na mão da estúpida de nariz empinadinho e gestos (mal) estudados a atestar que estava ali a exibir-se. vale dizer, a empenhar-se em chamar a atenção sobre si mesma. E isso não exige lá vasta inteligência, mesmo.


Quem percebia o perigo saltava de banda. Observe-se que a prima donna não estava à mesa, a ser servida por um atendente. Faltava-lhe, então, estabilidade. E, mesmo se fosse o caso, não haveria de se fazer da taça um balde.


Em tempo: como diria Mathieu Delarue, em “A Idade da Razão”, admiro os orgulhosos e os vaidosos. E até simpatizo com quem põe-se, por vaidade/orgulho, a “se amostrar”. Desde que, bem entendido, saiba como e disponha de capital para tanto, de acordo com a natureza do entorno.


Os adeptos ao politicamente correto, segmento mentalmente insalubre, dirão que é direito inalienável da barbie night topar o recipiente de vinho. Ou seja, “minha taça, minhas regras”. 


Ora, a figura não passa de uma diabrete, pequena entidade travessa, a promover algum transtorno. Exorciza-se com indiferença e risinho de desprezo. Só a tomei como referência para este pergolado artigo.


“Minha taça, minhas regras”? Pensamento estúpido - e digo “pensamento” por hipócrita cortesia. Romper com normas da boa conduta, sem que se detenha lastro para tal, é agitar a esfarrapada bandeira revolucionária da ignorância. Ad libitum não é para qualquer um, nem para qualquer uma. Até mesmo exercitar o excesso requer equilíbrio e controle.


A tradição vinícola, a boa prática da enofilia, traz, desde sua gênese e ao longo da sua história, orientações que visam, antes de tudo, promover o prazer quase que transcendental de se beber vinho. 


Dose a dose, num máximo - e olhe lá - de 300ml para cada, permite que possamos girar para liberar o bouquet, sem o risco de lançarmos o precioso líquido, nem sempre tão barato, taça a fora. O que inclui não molharmos, de forma indesculpável, quem esteja por perto.


Sim, há o jeito recomendável de beber vinho. Tal como há o jeito recomendável de selecionar o rótulo, ler o contrarrótulo, sustentar a garrafa na mão, abrir a garrafa -seja rolha de cortiça, natural ou sintética, ou screwcaps. 


Há a devida medida de tempo para o resfriamento de um tinto, de um rosé e dum branco. Há de saber qual queijo, carne vermelha ou branca, folha, legume, doce, se harmoniza com esta ou aquela uva; com esta ou aquela assemblage.


O objetivo, o desejo, é compor a convergência de sabores, formas, e cores num resultado feliz. E, até mesmo, algo de divergente, mas numa linha de elegância em que contrários promovem uma terceira margem de extraordinária possibilidade.


Gosto não se discute? Pois sim... Esta é uma expressão que contradiz a si mesma. Um mito, uma farsa, tanto como o termo adjetivo “incomparável”. Papo furado. Tudo se compara o tempo todo. Por conseguinte, gosto se discute e se educa.


Mais de uma vez fiz com que o convidado ou a convidada à mesa bebesse, mecanicamente, um gole de vinho. Em seguida, sugeri que mantivesse o gole na boca, mastigasse o líquido, aguardasse a salivação, permitisse que o vinho bailasse por todo o interior da boca. E mais de uma vez expressões de pleno de prazer e de gratidão me foram devolvidos.


Dinheiro é bom e eu, deste, gosto por demais. Contudo, postar-se à frente de um dispenser de vinho, com gestos afetados, a ignorar as judiciosas orientações, a mostrar, sem que tenha sido solicitada a fazê-lo, que enche a taça, à desmedida, porque pode pagar, é insultar l’argent. 


É insultar a Tradição Ocidental, é desmerecer a árdua labuta de anos, décadas, das famílias viticultoras, as quais se dedicaram, se esforçaram, para que, ao levarmos a taça aos lábios, possamos sorver o vinho e, devotos, nos demoremos com a sagrada bebida na boca. Assim, oxalá, sejamos abençoados e entremos, ainda que num breve instante, em contato com o paraíso.

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