Articulista
Leo Mittaraquis

É escritor e apaixonado pela arte culinária. Escreve às terças.

Sabor e história - A propósito de “A Deliciosa História da França”
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Obra clássica de Stéphane Hénaut e Jeni Mitchell, a dizer porque a França é o que é!

“De modo geral, os franceses não são muito fastidiosos e costumam comer muitas coisas que poderiam causar certo temor em indivíduos de outros povos - tais como pernas de rãs, lesmas de caracóis ou cérebros de bezerros. Essa ausência de fastio pode ser vista como uma virtude: um resquício de lembrança dos dias em que a maioria do povo francês era constituída de camponeses pobres, que não podiam ser muito seletivos com o que teriam em suas mesas”

Stéphane Hénaut e Jeni Mitchell

O texto complementar ao título deste livro: “As origens, fatos e lendas por trás das receitas, vinhos e pratos franceses mais populares de todos os tempos”.

Escrito por Stéphane Hénaut e Jeni Mitchell, é a publicação que, logo às primeiras páginas, mesmo que não concordemos com todas as observações, nos diz que é o livro que faltava na biblioteca. Mais ainda se o leitor ama quase tanto como eu a literatura, a história e a culinária.

Escrito de forma bem-humorada, sem que se descuide das informações bem documentadas, “A Deliciosa História da França” oferece leitura leve e cativante. São mais de 400 páginas que correm sob os olhos. Na verdade, o livro faz com que o leitor, que goste de consumir lentamente cada página, refreie a tentação de se deixar levar pela rápida dinâmica dos 52 capítulos, incluindo-se a conclusão.

A abordagem histórica pode ser considerada, pela importância dada, um eixo paralelo à abordagem culinária. E a história, neste livro, começa do começo, mesmo. Futura ancestralidade gaulesa dos franceses, a subsequente fusão com os romanos. Frases irônicas, entre parênteses, pipocam por quase todas as página. A relação direta entre comida, sua preparação e seu consumo, e as características de cada cultura, bem como as similaridades, recebem devida atenção.

Por exemplo, o capítulo intitulado “Deixadas para trás: as cabras de Poitou” é dedicado ao Chabichou, queijo produzido a partir do leite daqueles animais. A história envolve uma batalha decisiva entre os francos os omíadas, pertencentes ao califado que venceu uma guerra civil que provocou o cisma entre sunitas e xiitas, no século VIII.

As cabras, levadas, até a região onde se deu o confronto militar, pelo exército liderado pelo emir de Cordoba, foram deixadas para trás quando seu exército foi derrotado e o líder islâmico morto. Os animais deram-se bem no lugar, com o leite proporcionando a fabricação de um dos melhores e mais famosos queijos da França. Os autores ainda orientam sobre o consumo e harmonização: “o queijo tem um sabor muito melhor especialmente se acompanhado por uma boa taça de Sauvignon Blanc bem seco”.

É surpreendente, ao lermos este livro, passarmos a saber que Carlos Magno, em 768, subira ao poder e tornara-se um forte líder, também preocupado com o desenvolvimento da agricultura, publicando o documento intitulado “Assembleia das Cidades”, no qual instrui-se como “administrar terras férteis, criar peixes, conservar florestas, cuidar adequadamente dos vinhedos e criação de outros diversos animais”.

Hénaut e Mitchell destacam ainda “as regras de higiene no trato com alimentos”. Mas, dentre estas inovações, uma tomou vulto incomum: a produção de mel. Surge, então, nessa época, os fundamentos do que mais tarde será a Denominação de Origem Controlada para garantir a alta qualidade do mel, em seus tantos e tantos tipos, e para combater as fraudes. E o que se tornou tradição se manteve até os dias de hoje.

A história da França, da sua formação e da sua alimentação, digamos assim, foi marcada, de uma forma quase que contínua, por vários séculos, pelo flagelo da guerra, além de ter enfrentado a Peste Negra, que dizimou milhões, não só em terras francesas, mas, também, germânicas, italianas, espanholas e inglesas.

E além desses confrontos, sejam de origem cultural ou natural, outros embates se sucederam, como os que se deram e ainda se dão entre Borgonha e Bordeaux. A causa? Bem, ei-la: os vinhos. Segundo Hénaut e Mitchell, “poucas rivalidades gastronômicas podem ser comparadas à competição entre os vinhos da Borgonha, esses fabulosos descendentes da devoção cisterciana, e os vinhos de Bordeaux, produtos de incentivos e inovações mais mundanas. Trata-se de uma batalha travada não meramente visando lucros, mas, sim, o coração dos apreciadores de vinho do mundo inteiro”.

Outro aspecto curioso destacado no livro é referente à imensa variedade de tudo o que tem a ver com comida na França. Que tal visitar Avignon? Segundo os autores, o principal mercado de gêneros alimentícios, Les Halles, “transborda de azeitonas, ervas e temperos refinados, ostras e uma enorme variedade de queijos, carnes e pães manufaturados localmente”.

Mais adiante, ainda sobre o potencial de diversificação, Hénaut e Mitchell ressaltam que: “No interior de um supermercado francês comum, aventurar-se por alguns corredores é algo particularmente arriscado para as pessoas que vieram de outros lugares para a França. Acostumados a escolher rapidamente dentre opções limitadas de, digamos, mostarda, ou sal refinado, ou iogurte fresco, as aparentemente infinitas variedades apreciadas pelos franceses podem provar-se intrigantes”.

Mas “A Deliciosa História da França” não se limita aos vinhos, aos méis - ou meles - e aos queijos. Com efeito, é de fascinar ao espírito e à boca, o que os autores nos revelam sobre o cassoulet, comida típica francesa, muito apreciada, verdadeiro patrimônio cultural e gastronômico: “Contudo, talvez a competição mais longeva e duradoura envolva as cidades de Carcassonne, Toulouse e Castelnaudary; e sua motivação mais importante é a questão sobre em qual delas teria sido criada e aperfeiçoada a receita do cassoulet”.

“A Deliciosa História da França - As origens, fatos e lendas por trás de receitas, vinhos e pratos franceses mais populares de todos os tempos” é, sem dúvida, uma viagem literária, histórica, poética, mitológica, geopolítica, arqueológica, ao sabor das mais significativas combinações.

Ao lê-la, sentimos, de forma quase que irresistível, vontade de providenciar, caso ainda não tenhamos, passaporte, passagens e reserva numa pousada do interior do país, talvez em Roquefort-sur-Soulzon, no remoto sul da França, e poder comer o segundo queijo mais popular - depois do Comté - naquela cultura, e que já goza de mais de dois mil anos de idade: o Roquefort maturado no interior de cavernas.

Eu, ao escrever este artigo, não tive um minuto de sossego. A boca enchendo-se d’água durante a releitura do livro. Impressionante como um país consolidou seus alicerces sobre formas admiráveis de se cozinhar. Bon Appétit et Santé!

 

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