Aparte
Opinião - Nova normalidade da educação sergipana frente aos novos tempos

[*] Mário Resende

A responsabilidade freiriana pela educação, instrumento de poder humano para a liberdade e potência, como já foi dito anteriormente, é coluna vertebral dos seus escritos. Ocorre que no Brasil, país que somente após cinco séculos de formado teve um Plano Nacional de Educação aplicado a duras penas e, passando por tempos obscuros, no campo político e da saúde, em decorrência da epidemia do coronavírus, a Educação corre o risco de se tornar a primeira grande vítima.

Sabiamente as escolas fecharam nesse processo. Sim, salvamos vidas. Milhares de vidas. Assusta-nos, no entanto, como muitos cheios de boas intenções, torcem que continuem fechadas por muito muito tempo. E o que é pior, que nada seja feito, produzido, orientado, pensado, dialogado para que, após esse susto enorme, a esperança humana volte ser sonho e prática.

Acontece que estamos historicamente atrasados em muitos dos processos tecnológicos e sociais, e urge corrigi-los. Mas chamamos atenção para aqueles que, ao não proporem alternativas ao momento atual, se dizem pautar no pensamento freiriano.

No Brasil, por vezes, esses “donos do pensamento” aliam-se aos que sabem que conhecimento é poder, autonomia e libertação, para boicotar saídas, criar impossibilidades, e perdem-se em conjecturas. Não realizar os diálogos necessários é deixarmos fragilizar, ainda mais, a necessidade básica da defesa da vida e da educação como direito e fundamento. Como alicerce da cidadania.

A forma mais fácil de fazer isso é quando misturam, igual massa de bolo, quase que intencionalmente, o termo educar, formar, distribuir e criar cultura, dominar os códigos do conhecimento diversos como sinônimos de prédio, carteiras, crianças enfileirados, professor com diário de chamada do início do século XX, um quadro com giz, estudantes e comunidade escolar livres de ideais e livres de um mundo sem doenças. Não.

Não é isso e não deve ser isso. Questionamos aqui a inversão de perguntas e prioridades para defender a anomalia que é o “nada fazer”. Ao invés de indagarmos como os escritos do mestre Paulo Freire podem apontar saídas para, respeitando a vida física, com a devida proteção contra a pandemia, há uma pregação, quase que religiosa, para largar o espírito do conhecimento se fragilizar pela inanição conservadora dos que reproduzem, mesmo que no micropoder, ações coordenadas para que nada mude. A pergunta sempre foi e é: o que fazer?

Voltemos à história brasileira. Entre 1963 e 1964, em várias capitais dos estados brasileiros, foram instalados 20 mil círculos de cultura, destinados a alfabetizar dois milhões de brasileiros. Muitas dessas aulas, não esqueçamos, eram dadas via rádios, o mais potente instrumento para a época. Nada de imagem, interação, diálogo, troca de mensagem instantânea, como é hoje possível. O golpe militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular já conquistada. Paulo Freire ficou detido por 70 dias e depois foi exilado.

O golpe de Estado desestruturou aquele imenso esforço de democratização da cultura, qual seja o de educar, mas não conseguiu impedir que os movimentos sociais transcendessem os limites temporais da história brasileira. Durante o exílio, Paulo Freire participou de diferentes projetos em torno do Método de Alfabetização de Adultos e escreveu uma das mais importantes obras: Educação como Prática da Liberdade, um dos escritos poéticos mais belos do mestre.

Educação como Prática da Liberdade foi escrito em um tempo de transição histórica, segundo o autor. O tempo da escrita da obra dividia velhos e novos temas. O novo não se sobreporia ao velho sem sacrifícios, tampouco a vitória seria definitiva, mas acompanhada de recuos e desesperanças. O sectarismo predominante sempre tentaria diminuir a importância do povo, ainda que o tomasse em “proteção”, para poder pensar em seu lugar. 

Uma das ideias fundamentais presentes no livro é a de que só existimos se dialogamos. E só dialogamos se buscarmos saídas. Logo, a pergunta deve ser: o que fazer e nunca a afirmação “só devemos fazer quando estiver pronto isso e aquilo”. Freire lembra aos umbilicais que viver é estar no mundo. E estar no mundo é a forma individual de ser social.

O homem não vive só. Participar de cada contexto significa criar e recriar a experiência, respondendo os desafios de cada momento. Significa integrar-se à realidade de forma transformadora, sem acomodação. Freire tinha horror à prática da acomodação. A acomodação sempre é conservadora e estéril. Niilista. Já a transformação consiste na tomada de decisão refletida. Crítica. Se o momento é de grandes desafios, disse Freire, “cada vez mais funções intelectuais e cada vez menos funções puramente instintivas e emocionais” (Freire, 1999, p. 52).

Freire era contra à acomodação porque só a consciência retira o homem da condição de expectador submetido ao poder dos mitos e forças sociais, dos donos da verdade, dos acomodados nas tradições de mando, espertos em incutirem nos homens e mulheres o temor pela liberdade, pelo saber, via tutoria.

Para Freire, um dos papéis do professor brasileiro é, através da Educação, enriquecer a consciência popular da nação, expressa em interpretações simplistas dos problemas, na debilidade de argumentação, na alta emocionalidade, polêmicas estéreis e explicações mágicas.

Contra essa consciência de massa acrítica, propunha a educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política. Diante de tudo isso, indagamos: quais caminhos, o que estamos aprendendo, como devemos encarar os novos desafios, qual meu papel de educador nesses tempos onde a vida deve ser vivida, vívida e pulsante, apesar da pandemia? Outras e tantas perguntas, devem ser postas aqui. O diálogo frutífero inicia-se pela pergunta que desafia. Assim aprendi com Freire e com a vida.

Somente a educação dialogal levaria à consciência crítica. Ou seja, a interpretação fundamentada dos problemas, oposta à falta de responsabilidades individuais com os problemas coletivos, assim como a posição de acomodação, tão ao gosto dos que gritam e acusam, mas não dialogam.

A consciência crítica é a única adequada à democracia, porque é contrária às formas históricas de “mutismo” típicas do autoritarismo. Na visão freiriana, a pouca experiência de diálogo no Brasil é histórica, vem da colonização e foi reforçada por um certo modelo de educação tradicional, bancário, fundado na descrença da capacidade do educando ser alfabetizado, leitor, estudante crítico, amante das ciências, das artes e dos saberes, respeitador das diferenças e cidadão do país. 

Por isso, pensar a Educação escolar em tempo de pandemia, usando-se os mesmos pensamentos e métodos anteriores, é um convite a um questionamento crítico necessário. A cômoda educação bancária que compreende alunos como consumidores de conteúdo, com professor, quadro e giz, ouso dizer, ficará na história.

Entrarão no seu espaço as aulas que devem estimular a leitura, o debate, a escrita, a criação e a recriação dos conhecimentos. Já estamos atrasados. Em outras palavras, os alunos devem ser corresponsáveis pelas aulas e os professores mediadores do processo de aprendizagem. É assim que se forma. Mais força no valor da cultura. Maior aprendizagem. Avaliações por projetos, interação, diálogo, comunicação, avanço nos saberes, relação com a comunidade, domínio do conhecimento. Responsabilidade social. Domínio das artes e tecnologias. Precisamos de provas de marcar x para estudantes que interagem dessa forma com a escola?

Mais do que nunca, é preciso diálogo franco e horizontal entre os diversos segmentos da escola para refletir e construir práticas na tentativa de não deixar nenhum aluno para traz e que elas sirvam de matéria prima para momentos de normalidade. E que a nova normalidade, por favor, herde apenas o melhor da antiga.

Como bem defende Freire em seus livros e falas, a primeira condição para que um ser humano e, especialmente, um professor, possa se comprometer com a ação pedagógica é ter plenamente a capacidade de agir e refletir. Não nos parece tarefa fácil nestes tempos de pandemias, intolerâncias, ressurgimento do ideário fascista, dentre outros, no Brasil e em diversas partes do mundo.

Nesse momento, mesmo distantes por causa da pandemia, unidades escolares não devem agir como verdadeiras comunidades, onde professores, equipe diretiva, funcionários e pais devem buscar entender suas especificidades, refletir sobre elas e, a partir de então, tentar atender a heterogeneidade do seu alunado? O que não podemos é cruzar os braços e nem abandonar os alunos e a comunidade, por comodidade e ou dificuldades outras.

Educar para liberdade é acreditar na capacidade do homem discutir os seus problemas particulares, que são problemas nacionais e mundiais, problemas da própria democracia. A educação libertadora é coerente com a realidade, sobretudo. Ela é fruto da práxis, se realiza na escola e fora dela. Por isso mesmo, nos faz pensar o tempo presente, quando o mundo assiste à economia e à sociedade, de forma avassaladora e cruel, balançar seus fundamentos.

A pedagogia freiriana se faz essencial nesses tempos de pandemia porque tem compromisso com a educação, não é dogmática e tem por fundamento fundante o conhecimento e a cultura humana como essencial à liberdade. O que precisamos é lutar e garantir acesso aos saberes, usando-se todas as tecnologias possíveis, sem abrir mão da educação geral, dos usos e meios para proteção dos que fazem a educação, seja na escola física ou nas novas escolas e experiências educacionais que estão aí e que irão surgir.

Beber nas experiências freirianas, nos fortalece para ultrapassar as barreiras do momento, todas difíceis, para construir coisas e novos desafios, avançar nas novas possibilidades, estruturas, técnicas, materiais, diálogos, instrumentais.

Exterminar o niilismo, o monstro conservador que impede o avanço do diálogo na educação, delega a cada um de nós o papel da defesa e de responsabilidade da educação pública como direito humano e cultural do nosso povo e da nossa nação. Dialogar sobre nossos papéis, responsabilidades, ações e proposituras será um belo e profícuo caminho. Professoras e professores, bem-vindos ao diálogo!

[*] É professor da Universidade Federal de Sergipe.

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