Aparte
Opinião - Mergulho, Luiz Eduardo Oliveira e o delicado território da memória

[*] Jeová Santana

Nos seus conhecidos ensaios “Experiência e pobreza”, (1933) e “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, (1936), Walter Benjamin, (1892-1940), apresenta uma perspectiva bastante sombria ao analisar certa prática humana que, no embate contra a máquina do mundo, estaria sob ameaça: o gosto de se contar histórias. 

Uma das razões adviria do fato de as práticas sociais serem cada vez mais solapadas pelas demandas do capitalismo, sobretudo pela presença opressiva da técnica. Nesse sentido, o fato de terem “voltados silenciosos” e “mais pobres em experiência comunicáveis” (1985, p. 115), os soldados da Primeira Guerra, soava como um alerta mais que vermelho. 

Na visão do filósofo, “é a experiência da arte de narrar que está em vias de extinção”. “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. (1985, p. 196-197). 

Nesse caso, restariam no museu da memória dois grupos humanos, representados pelo “camponês sedentário” e pelo “marinheiro mercante” (idem, p. 199), que cultivaram a arte de narrar, tendo-se o passado como tema e rota de fuga contra as amarguras do presente.

Trazendo essa análise para o nosso aqui/agora, temos dois apontamentos: a crise da experiência é visível. Basta olhar a força com que os novos suportes técnicos para a comunicação contribuem para que haja espaços cada vez mínimos de convivência, de contato em tempo real com o outro, ao mesmo tempo que diminuem as práticas aprofundadas de leitura e escrita. 

A outra é que, malgrado esse cenário, ainda há muita gente querendo manter viva a “tradição” da narrativa. Se esta se reduziu no âmbito da oralidade, continua a pulsar no território da escrita. Mal ou bem, o gênero romance atravessou o século em que o pensador alemão engendrou sua análise nada otimista e não dá sinais de que vá sair de cena.

Um exemplo em que a experiência da vida, no esplendor dos anos da juventude, depois das turbulências da adolescência, pode render uma boa fatura literária, está neste Mergulho, de Luiz Eduardo Oliveira, professor universitário que teve e tem na música outra forma de se presentificar nesse mundo. Agora chegou a vez de sua literatura com esse relato, misto de novela e romance, pois tem a pluralidade de ações da primeira e a densidade reflexiva do segundo. Sobre sua estreia na arte narrativa, o autor deu-me a deferência para escrever essas poucas linhas.

Nos seus 49 capítulos, temos uma demarcação muito tênue entre o que pertence ao personagem central, cujas peripécias são apresentadas por um narrador, colado pele e osso com ele, no tempo cronológico dos anos 1980, entre Aracaju e São Paulo; e aquilo que sabemos ser registro do autor em seu trânsito juvenil pelos espaços da memória nas duas cidades. Colocar a autoficção como clave explicativa não soa descabido.

Para a exposição dessa dualidade, Luiz Eduardo acertadamente escolheu a forma dos capítulos curtos, a qual soa mais propícia para dar vazão às idas e vindas do rio da memória. Nesse périplo, tem-se um apanhado de referências espaciais em Aracaju e São Paulo, que se sobrepõe à mera nostalgia e servem como leitura de retratos urbanos em termos de mobilidade, diversão, transgressão e boemia.

Na primeira: avenidas Augusto Maynard e Barão de Maruim, Cacique Chá, Associação Atlética, Fugase, Boate Tio Zé, Bar Manequito, Cine Palace, Parque Teófilo Dantas. Na segunda: avenida Paulista, Praça Roosevelt, avenidas Ipiranga e São João, Viaduto do Chá, Praça da República, Sesc Pompéia, Vila Madalena.

Em outro plano, vale também destacar as inúmeras referências culturais que atravessam o plano existencial do personagem. São ícones de vários estratos da cultura pop e literária, dentro e fora do país, sobretudo na representação musical: Sílvio Santos, Alceu Valença, Michael Jackson, Barry White, Janis Joplin, Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Donna Summer, Jimi Hendrix, Jack Kerouac, Gretchen, Legião Urbana, Raul Seixas, Guilherme Arantes, Gilberto Gil, Beth Carvalho, The Cure, The Smiths, Pink Floyd, Camus etc.

No meio desse itinerário, há sempre espaço para outras formas de viagem movidas por “bagana”, “bagulho”, “ponta”, “massa”, “maconha”, “lombra”. Sem contar o vinho, a cerveja e a batida. Afinal de contas, ninguém é de ferro. Assim, a tríade droga, sexo e rock and roll, não necessariamente nessa ordem, torna-se uma alternativa à luta do personagem para fugir da mediocridade na sempre eterna luta de classe, nos êxitos e fracassos amorosos, no peso da relação com a família patriarcal. 

Em relação à linguagem que salta dos anos que cercam a narrativa, pode-se estranhar uma ou outra atitude se observada sob os parâmetros comportamentais de agora. No entanto, essa constatação é mínima quando confrontada à violência e ao espírito equestre que pairam atualmente sobre o Brasil. 

Outras duas inserções também servem para o prazer da leitura narrativa: a presença do onírico e dos poemas pertencentes ao personagem central. A presença do primeiro exige do leitor alguma atenção para não confundi-lo com o que está no nível do enredo, pois o absurdo aparece de forma “natural” em ambos. 

Já a experiência poética não soa destoante no conjunto da narrativa, seja porque é acompanhada pelo humor que norteia as duas instâncias citadas, seja por ser uma espécie de remanso para seus traumas existenciais nas relações com o trabalho numa livraria em São Paulo ou num cartório em Aracaju, no qual irá substituir o pai, fazendo com que assim fosse “(...) cumprida a missão de manter e conservar uma linhagem tradicional de gerações assalariadas” (p. 9). 

Ou ainda nos (des)encontros com as ocasionais companhias femininas. Aqui, muito de sua instabilidade emocional pode ser avaliada nessa cena: “E aí, amor”, ela o beijava, “tá pensando em quê?”. “Ele não respondia”. “Porra, cara, justamente quando eu tô me sentindo legal tu me vem com esse teu astral horrível”. “E o que é que você quer que eu faça?” (p. 88). 

Sai-se desse Mergulho com a sensação que se arrefeceu um trauma, principalmente quando se observa que o empobrecimento, apontado por Walter Benjamin, só se aguçou na virada do atual milênio. Não é outra a sensação ao final dessa escritura. O narrador deixa em aberto a possibilidade de o personagem, qual o Severino de Cabral, “(...) saltar/ fora da ponte e da vida”. O leitor tem a alternativa de se manter aqui, nesse vale e suas lágrimas. Afinal, a literatura não salva ninguém, mas consola. 

[*] É professor, poeta e doutor em Educação.

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