Aparte
Opinião - A dissonância cognitiva dos bolsonaristas

[*] Jorge Santana

A dissonância cognitiva é um viés de compreensão que ocorre quando as pessoas precisam dar coerência às suas crenças, sendo estas desmentidas pelos fatos. O termo foi criado pelo psicólogo social americano Leon Festinger, para quem a existência de dissonância é o resultado de um desconforto emocional que ocorre quando fatos ou evidências contrariam as crenças ou cognições de uma pessoa ou grupo de pessoas.

Não é preciso nenhum esforço intelectual para deduzir que os bolsonaristas padecem de uma severa dissonância cognitiva capaz de entorpecer-lhes a mente e de fazê-los negar a realidade, dispondo-se a sobreviver em uma bolha regada a fake news e a teorias conspiratórias que atentam contra a sanidade mental.

Antes de prosseguir, uma ressalva: acredito firmemente que ao menos uma terça parte daqueles que ainda se alinham nas fileiras do bolsonarismo sente-se confusa e envergonhada, portanto estão sujeitos a recuperar a consciência e é para eles que me dirijo. Quanto aos outros dois terços, estes são irrecuperáveis e, infelizmente, metade deles é formada por fanáticos e lunáticos capazes de cometer atrocidades.

Voltando ao tema deste despretensioso ensaio, são tantos e tão evidentes os fatos que povoam o universo paralelo do bolsonarismo que se torna enfadonho elencá-los, cabendo-me aqui, em um desafiador exercício de síntese, privilegiar aqueles que parecem ser os mais relevantes.

A “ameaça comunista” - Acreditar que o Brasil e a América do Sul estão sob risco de se tornarem comunistas é de uma obtusidade inominável. No nosso caso, se um partido de esquerda nunca tivesse comandado o país, poderia até ser admissível uma certa dose de desconfiança, mas depois de 13 anos governando sob os marcos do capitalismo e seguindo o desejável (e necessário) receituário social-democrata (ou socialista, como preferem ser denominados alguns partidos não-comunistas), falar em ameaça comunista é insultar os próprios neurônios.

Como desgraça pouca é bobagem, a maior parte dos bolsonaristas não se envergonha de expor sua ignorância histórica e sordidez moral ao defender a volta da ditadura militar, regime implantado a partir de um golpe que matou e torturou brasileiros, sufocou a democracia e suprimiu as liberdades por 20 longos anos.

A pandemia da Covid-19 - Antes fossem apenas omissões, mas o (des)governo bolsonarista agiu deliberadamente como aliado do SARS-CoV-2, perseguindo a criminosa tese da imunidade de rebanho, promovendo o curandeirismo (cloroquina, vermífugos etc) e retardando a aquisição de vacinas.

Resultado: quatro de cada cinco mortes teriam sido evitadas se o Brasil estivesse na média mundial de óbitos pela Covid-19, ou seja, mais de 400 mil mortes não teriam ocorrido (Estudo Epicovid, UF Pelotas).
O projeto de desconstrução nacional - Lanço mão de trechos da matéria “Brasil tem retrocesso de até três décadas na economia, na educação e no meio ambiente”, publicada no jornal O Globo em 19/06/22:

O Brasil voltou ao passado na economia, no bem-estar da população, na educação e no meio ambiente, exibindo indicadores que remontam a até 30 anos. Recessão, pandemia e desmonte de políticas públicas acentuaram nos últimos dois anos um processo de retrocesso social. Trouxeram de volta a fome, a pobreza, a evasão escolar, o desmatamento, a inflação, ameaçando o desenvolvimento do País, alertam especialistas.

Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, surpreendeu-se com o recuo de tantos índices. “É uma volta muito grande no tempo”, diz, referindo-se ao Produto Interno Bruto - PIB - de hoje, equivalente ao de 2013. “A produção de bens de consumo duráveis (carros e eletrodomésticos) está igual à de 18 anos atrás. Parece uma situação de guerra, voltando tragicamente no tempo”.

A economista Silvia Matos, coordenadora técnica do Boletim Macro do Ibre/FGV, calculou que somente em 2029 vamos voltar ao maior valor real do PIB per capita, de R$ 44 mil, atingido em 2013, considerando a média de crescimento dos últimos anos do país, em torno de 1,5%.

Retrocessos sociais se acumulam. A fome agora atinge 33 milhões de brasileiros, mesmo número de 1992. Quando o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, em 2014, eram 9,5 milhões nessa situação. As políticas de segurança alimentar, como a aquisição de alimentos da agricultura familiar, cujo orçamento era de R$ 550 milhões em 2012, caiu para R$ 53 milhões.

Na educação, as crianças perderam mais. A evasão escolar na faixa de 5 a 9 anos está igual à de 2012, de acordo com estudo do economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social: “Chamou a atenção a piora entre as crianças mais novas, especialmente entre 5 e 6 anos, depois de grandes progressos nos últimos 40 anos”.

No meio ambiente, voltou-se ao passado de desmatamento crescente. Na Amazônia, onde foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, o corte de árvores nunca foi tão grande. “Nunca imaginávamos voltar a 10 mil quilômetros de área desmatada. É um método de desfazer a governança sobre o tema ambiental que vem sendo feito sistematicamente em todas as áreas. Tira o orçamento, tira o pessoal competente, cria níveis de burocracia adicionais para penalizar pelo ilícito, legaliza coisas ilegais, não cria unidades de conservação e tenta eliminar as que existem”, afirma Tasso Azevedo, coordenador do Mapeamento Anual da Cobertura do Solo no Brasil (MapBiomas).

Embora a matéria tenha se limitado a esses aspectos, o fato é que todas as áreas da administração pública federal vêm passando por sistemáticos e intencionais desmontes. Na cultura, somos obrigados a assistir a um festival onde predomina uma insana verborragia ideológica.

Na Ciência e Tecnologia, cortes severos em recursos para a pesquisa e para bolsas interrompem o ciclo virtuoso de alguns anos atrás e condena o país ao atraso e à perda de competitividade. Como se não bastasse, a política externa ideologizada destrói a boa imagem e a liderança do país, cuidadosamente construídas ao longo das últimas décadas, tornando-nos um pária no concerto das nações.

Uma tentativa de classificar os bolsonaristas - Tenho visto várias categorizações dos bolsonaristas e tomo a liberdade de criar a minha própria classificação, em três subespécies. A primeira é a dos envergonhados, aqueles que silenciam nos debates e nas redes sociais quando o assunto é política e eleições.

Essa é a fração que, acredito, pode ser libertada da realidade paralela do bolsonarismo, recuperar a consciência crítica e ajudar a derrotar essa tragédia logo no primeiro turno da eleição presidencial deste ano. É o que temos visto, por exemplo, com empresários dos mais diversos portes, até então um dos esteios do bolsonarismo, que começam a readquirir a lucidez e a parar de atirar nos próprios pés, dado o descalabro da política econômica em vigor.

A segunda parcela é a dos disfarçados, que se escondem por trás da bandeira nacional para demonstrar, como se patriotismo fosse, o vínculo com o ideário neofascista do bolsonarismo.

Poucos deles podem recuperar a cognição, ao contrário, uma parte desse contingente tende a migrar para a categoria mais radical, dada sua disposição para consumir toda sorte de (des)informação que circula na bolha bolsonarista, sobretudo com o acirramento do processo eleitoral.

Finalmente, a última e pior fração, a dos bolsonaristas raiz. Em artigo intitulado “Os 12% do presidente – em que lugar da sociedade habita o bolsonarista convicto?”, publicado em 2019 e de autoria de Reginaldo Prandi, professor emérito da USP e um dos fundadores do Datafolha, o autor afirma que o grupo dos mais afinados com Bolsonaro é formado pelos que votaram nele, aprovam seu mandato e concordam com suas declarações.

São os adeptos fiéis, entusiastas fanáticos, para não dizer adoradores em qualquer circunstância e representam 12% da população com 16 anos ou mais. É o chamado grupo heavy, aquele núcleo duro de apoiadores irrestritos. Obviamente, estes são incorrigíveis e discutir com eles equivale a dialogar com uma porta, afinal de contas reúnem elevado déficit cognitivo e acentuada identificação com os “valores” do bolsonarismo - rascismo, misoginia, aporofobia, homofobia, empatia zero, dentre tantos outros.

Conclusão - A conclusão dessa reflexão: o bolsonarismo produz dissonância cognitiva grave, mas o que mais surpreende é o alcance - aproximadamente um terço do eleitorado -, formando uma base social que legitima um líder que afronta princípios da democracia, da cidadania, da solidariedade e do respeito ao próprio cargo que ocupa.

Um governante que trata como lixo o meio ambiente, a educação e a ciência, que não se vexa de se mostrar ignorante, malformado e mal-informado, preconceituoso, useiro e vezeiro de expressões chulas. Aliás, de poucas palavras e argumentação precária, é detentor de uma biografia singular, na qual é impossível encontrar alguma coisa virtuosa.

Resta-nos, à maioria de brasileiros não-bolsonaristas - de esquerda, de centro e de direita -, o dever cívico e moral de dar um basta a essa calamidade que se constitui, sem a menor dúvida, na maior aberração da história do Brasil desde 1.500.

[*] É empresário e ativista pró-democracia.

 

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