Aparte
Opinião - A reescrita do passado colonial de Sergipe: negros e negras da Guiné e de Angola

[*] Mário Resende

Segundo dados da última parcial do censo do IBGE (2019), 79,7% da população sergipana tem origem africana autodeclarada. São os descendentes dos homens e das mulheres das nações Angola, Congo, Nagô, Jeje, que foram trazidos como escravos para esse torrão nos períodos colonial e império.

A história desses povos e desse passado sergipano, ainda pouco conhecido pelo grande público por falta de obras escritas, ganha novos contornos com a publicação do livro da historiadora Joceneide Cunha.

Fruto de sua tese em história, o livro intitulado “Negros(as) de Guiné e de Angola: nações africanas, vivências e sociabilidades (1720-1835)”, traz à baila uma rica discussão com análises, fatos, nomes, tabelas, narrativas sobre Sergipe e os povos africanos que para cá foram trazidos e que aprenderam, desvendaram, plantaram, criaram redes, deixaram marcas, sobreviveram à terrível vinda da África e à escravidão em Sergipe a partir dos anos de 1720.

A construção da análise e das narrativas sobre esses africanos que foram trazidos para Sergipe é feita de forma didática, dentro dos espaços geográficos da produção agrícola, das vilas existentes na época, como São Cristóvão, Santo Antônio de Itabaiana, Santa Luzia do Piauí, Lagarto, Santo Amaro, Vila Nova e Propriá.

A autora percorre e enuncia as nações que foram trazidas para Sergipe, bem como analisa o papel da religião católica através dos ofícios do batismo, do apadrinhamento, casamento e outros rituais, como a fiadora da nova realidade cultural africana em terras estranhas, além de traçar um perfil da população escravizada, suas vivências, trabalho, sociabilidades, cuja culminância se dá com a constituição das diversas Irmandades do Rosário dos Homens Pretos e São Benedito, em Sergipe, nos séculos XVIII e XIX.

Irmandades dos Homens Pretos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito existiram em Santo Amaro, Brejo Grande, Estância, São Cristóvão, Santa Luzia, Lagarto, Laranjeiras, Frei Paulo, Itabaiana, Malhador, Itabaianinha, Divina Pastora.

Foram instituições religiosas cujos fins eram a ajuda mútua e o socorro religioso nas doenças e nas desgraças. Tinham o papel de ofertar missas, velórios e outros ritos religiosos ligados ao casamento, batismos, morte e sepultamentos. Faziam pequenos empréstimos de dinheiro, organizavam as festas religiosas da padroeira ou padroeiro.

Foram espaços de pertencimento e cuidados mútuos. Os recursos das Irmandades eram oriundos de doações dos membros, através de taxas, anuidades, esmolas, doações testamentárias.

O livro de Joceneide Cunha traz uma importante contribuição aos estudos demográficos sergipanos sobre o passado deste Estado, aprofundando uma linha traçada por Luiz Mott, Thetis Nunes e Vanessa Oliveira.

Mas avança e descortina outras realidades e temas, com propriedade, sobre os homens, as mulheres, as adolescentes e as crianças africanas trazidos para ser escravos em Sergipe no maior êxodo registrado na humanidade. Batizados com nomes portugueses, africanos e africanas, Congo, Benguela, Cabinda, Rebolo, Cassange, Moçambique, Mina, Jeje, Haussás, Camarão, Nagô, da Costa, Guiné, Borno, São Thomé, dentre outras culturas não registradas nos documentos oficiais, que foram “desaparecendo” na árvore do esquecimento da história sergipana e brasileira, são recuperados no livro de Joceneide Cunha, vívidos e atuantes na produção, nas profissões, nas festas, nas diversas redes humanas existentes na época.
Senti falta, e a autora não é obrigada a inserir nas próximas edições, de um capítulo descritivo sobre as nações e ou culturas trazidas para Sergipe. A árvore do esquecimento historiográfico também precisa ser questionada sobre uma renca de lugares, no sentido geográfico dos espaços estudados, com nomes africanos, as tradições que subsistem, e que deviam ser esmiuçadas, em notas de rodapé, para o trabalho ser mais rico.

Afinal, não foram homens e mulheres passivos, sem espírito e sem vida, que foram trazidos para ser escravizados. Um capítulo sobre contestações, revoltas, formas de resistências e enfrentamentos, dos homens e mulheres africanos e cativos, em muito contribuirá para o desfazimento do discurso de Marcos Antônio de Souza, o bispo que registrou o paraíso na terra sergipana, entre escravizados e senhores, lá pelo ano de 1808. Afinal, sociabilidade(s), em sociedades escravocratas, se fazem com contestações. Quando falta nos escritos históricos, é necessário revisitar os arquivos. O livro está à venda no Museu da Gente Sergipana.

SANTOS, Joceneide Cunha. Negros(as) da Guiné e de Angola: nações africanas, vivências e sociabilidades em Sergipe (1720-1835). Salvador: Edufba, 2021.

[*] É professor da Universidade Federal de Sergipe.


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