Aparte
Jozailto Lima

É jornalista há 40 anos, poeta e fundador do Portal JLPolítica. Colaboração / Tatianne Melo.

Reintegração do Edifício Bela Vista deixa enormes queixas de abusos a direitos humanos
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Forte presença da PM não deu margem para diálogos

Claro: a Polícia Militar de Sergipe nega e diz que tudo foi dentro da lei. Uma guerra de tensões e cumprimentos de decisões judiciais. De combates entre polícia e sem teto. De pedras voando, trator derrubando tapumes. De manifestantes presos - sete, ao todo. Tudo isso no centro de uma pandemia de coronavírus. E ao final, versões de maus-tratos e de normalidade. Mas, em síntese, uma parte da fotografia do drama da falta de moradia popular em Aracaju.

Assim pode ser sintetizada a ação da Polícia Militar do Estado de Sergipe na manhã do último domingo, 23, para a retirada de uma série de famílias do Edifício Bela Vista, na Avenida Ivo do Prado, 77, alvo da chamada Ocupação João Mulungu.

O prédio, uma das primeiras construções feitas pela Construtora Cosil no final dos anos 1970, tem oito pavimentos, 14 apartamentos e foi alvo de ocupação por parte do Movimento de Lutas nos Bairros - MLB. Antes, ele servira de sede à Polícia Federal em Sergipe, e o Poder Judiciário chegou a utilizá-lo por um bom período enquanto construía seu anexo da Rua de Pacatuba. Até a ocupação, o velho prédio estava vazio. De carroceria batendo, mas tem dono, que buscou reavê-lo.

Restos da Ocupação João Mulungu: apenas trapos no asfalto

AÇÃO “DESASTROSA” NA MADRUGADA - Ao final de uma ação iniciada na madrugada, sete componentes da ocupação foram presos, o edifício liberado e restaram muitas queixas de abusos aos direitos humanos.

“Foi uma ação totalmente desastrosa, ilegal e imensamente desproporcional à necessária para a situação. Veja: eu recebi às 5h54min da madrugada a ligação de que estava sendo invadida. Solicitei que pedissem para esperar o advogado chegar. Vesti uma roupa e saí imediatamente para a Ivo do Prado. Chegando lá, eu fui impedido pela tropa da PM”, diz o advogado Alberto Dantas, do MLB.

“E é importante frisar isso: é direito do advogado acompanhar. É uma prerrogativa constitucional do advogado defender. Um oficial, de longe, gritou: “Quem deixou essa pessoa entrar? Tira ela pra fora”. Identifiquei-me como advogado. E só ouvi: “Não. Sai, sai. Bota ele pra fora”. Nesse tom. Aí vieram dois policiais, me pedindo que eu os acompanhasse. “Se não a gente vai ter de lhe levar à força”. Fui impedido”, reforça Alberto.

Alberto Dantas: “Eu fui impedido pela tropa da PM”

“INTOLERÂNCIA DO GGCC DA PM” - Toda a ação da PM de Sergipe naquela manhã de domingo teve o acompanhamento de perto da Comissão de Direitos Humanos da OAB, através do seu presidente Robson Barros. E a visão do advogado Robson converge para a de Alberto Dantas. Robson vai mais além: aponta intolerância dos que decidem em nome do Gabinete de Gestão de Crises e Conflitos da Polícia Militar do Estado de Sergipe - GGCC -, responsável por toda a ação.

“No momento pandêmico, o juiz determina a reintegração, mas quando chegou lá, na hora em que retirou as famílias, verificou-se, primeiro, a ausência de um diálogo para uma saída pacífica. Vimos ali que o GGCC foi desautorizado a negociar. Era esse Gabinete que já vinha acompanhando a ocupação. Veja: há sete anos de negociações do GGCC, nunca fora necessária uma intervenção da tropa de choque. Essa foi a primeira vez que eu vi um gerenciamento de crise não ser autorizado a mediar. Foi impedido o meu acesso, assim como o do advogado do MLB. A gente não entendeu, o que nos causou um susto a operação do comando, que não permitiu esse diálogo. Optaram por aquela cena de um trator derrubando os tapumes e pela entrada da tropa de choque num local onde haviam mulheres e crianças”, afirma Robson.

Do mesmo, e óbvio, sentimento de espanto ficou tomado o coordenador do MLB em Sergipe, Jessé Samá. “Nós do MLB consideramos uma ação ilegal e criminosa. Está na lei que não podem acontecer despejos durante os finais de semana, e esta aconteceu pela madrugada de um domingo sem que a gente tivesse sido sequer notificado pelos oficiais de justiça e, para nós, o que é bem pior, tudo isso com a anuência da secretária de Assistência Social de Aracaju, a senhora Simone Passos, o que é um absurdo”, afirma Jessé Samá.

“ASSISTÊNCIA SOCIAL INIMIGA DO POVO POBRE” - “Neste momento, temos várias famílias da Ocupação João Mulungu sem ter para onde ir e a Secretaria de Assistência Social, de maneira fascista, apoiando a reintegração de posse. A Simone é uma inimiga do povo pobre. Ela não deveria estar secretária de Assistência Social. Ela deveria estar presa por mentir, por ser anuente com a violência contra crianças, mulheres. Tinha em torno de 10 crianças ali. Nós achamos que quando acontece uma ação despejo, o poder público precisa dar cobertura e amparo. Por que essas pessoas vão para onde?”, reitera Jessé

“Vamos lembrar que esse é o pior momento da pandemia. Estão morrendo milhares de pessoas, e as que estavam na Ocupação João Mulungu tinham onde comer e onde dormir. Era um prédio que estava vazio e abandoando. E agora, esses pessoas vão para onde? A Prefeitura de Aracaju não deu solução nenhuma para essas pessoas, que não tem para onde ir”, completa.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Robson Barros, diz que a decisão de cumprimento do mandado de reintegração de posse neste momento rema contra decisões do Poder Judiciário de Sergipe e do Conselho Nacional de Justiça, e que isso não deveria ter ocorrido.

“Existe uma circular do Poder Judiciário de Sergipe dizendo que não recomenda a reintegração de posse num momento pandêmico - assim como em todo o Brasil, com apoio do CNJ. As pessoas ali são vulneráveis. Nós acompanhamos os cadastros das 65 família feito pela Secretaria de Assistência Social e fizemos um relatório junto ao processo agora em abril, pontuando que das 65, cerca de 38 tinham endereços residentes. Com base nisso, a autora (Cosil) pediu novamente a reconsideração da decisão e aí o juiz deferiu”, diz Robson.

Um dia de papo sem efeitos, apelos sem resultados: edifício livre

“INTERVENÇÃO DESNECESSÁRIA, INOPORTUNA E DESUMANA” - “A Comissão de Direitos Humanos da OAB acompanha desde quando eles ocuparam o prédio. Nós fizemos uma visita, elaboramos o relatório sobre a situação das pessoas que estavam morando lá e encaminhamos para a Defensoria Pública do Estado de Sergipe, que acompanha tudo. Este nosso relatório embasou em fevereiro, inclusive, um indeferimento da justiça de um pedido de reintegração de posse feito pela Cosil. O que a gente pontuou naquele relatório é que estamos num momento de pandemia”, relembra Robson.

“Qual, então, o ponto de discussão da gente? Em síntese, a nossa visão é a de que foi desnecessária, inoportuna e desumana a intervenção da tropa de choque da PM na reintegração de posse, mesmo porque não estava prevista a realocação daquelas famílias. Somente na hora, diante de toda a pressão da gente, a Secretaria de Assistência Social do município de Aracaju, juntamente com a do Estado, se virou para conseguir realocar 25 famílias”, diz o advogado.

“A PM SÓ FEZ CUMPRIR UMA ORDEM JUDICIAL” - No outro lado da questão, o coronel Fábio Machado, porta-voz da Polícia Militar de Sergipe, nega todas essas afirmações de supostos abusos por parte da corporação. “Toda a ação da Polícia Militar de Sergipe é transparente, principalmente em reintegração de posse, porque nesses casos ela só faz com a presença de oficiais de justiça”, diz o coronel Machado.

“A Polícia Militar só fez cumprir uma ordem judicial, e acompanhada, inclusive, de três oficiais de justiça - e isso não é tese, é um fato. Estava lá a Comissão de Direitos Humanos da OAB, estava lá o representante da Defensoria Pública - e tudo foi acompanhado por todos. Inclusive, esses oficiais foram vítimas dos ocupantes do prédio, que jogaram pedras contra eles e contra os policiais militares”, reitera Machado.

O porta-voz não estranha a prerrogativa de reclamação dos advogados. Diz apenas que o alvo deles estaria errado. “Os advogados têm todo o direito de fazer questionamento, e qualquer coisa é só procurar a Justiça.

Todo questionamento deve ser tratado diretamente com a Justiça, porque a Polícia Militar estava cumprindo a um mandado judicial. Se foi irregular, então quem teria de responder é a justiça”, diz o coronel.

Robson Barros: “Foi desnecessária, inoportuna e desumana a intervenção”

SIMONE PASSOS DESMENTE JESSE SAMÁ - “A qualquer questionamento que eles tenham, fiquem à vontade. Mas não é com a PM. Da parte da PM, garanto que não houve exorbitância. Foi tudo cumprido conforme determina o mandado judicial, devidamente acompanhado por quem de direito. Geralmente, tem um oficial de Justiça, mas nessa de domingo especificamente tinha três”, reitera.

“Nossos sete ativistas continuam presos. Nós estamos fazendo uma vigília na porta da Segunda Delegacia, na Rua Divina Pastora, até a libertação desses nossos companheiros”, disse à Coluna Aparte Jessé Samá, no meia da manhã desta segunda-feira, 24.

A secretária de Assistência Social do município de Aracaju, Simone Passos, foi procurado pela Coluna Aparte para se defender das acusações feitas pelo coordenador do MLB, Jessé Samá, e as rechaçou com veemência e dados positivos da Secretaria que ele comanda sobre os episódios de domingo. O que Simone Passos diz vai a seguir, na íntegra e entre aspas..

Simone Passos: “Fui agredida verbalmente e desacatada, mas jamais agi da mesma forma” (Foto: Marcelle Cristinne)

“É com imensa surpresa e tristeza que recebo as denúncias do Movimento Luta nos Bairros ao meu nome, enquanto secretária municipal de Assistência Social, atrelado a ação de insensibilidade e falta de humanidade.

Reforço meu comprometimento desde as primeiras horas da manhã do domingo, 23, quando acionei técnicos da Secretaria da Assistência Social de Aracaju para acompanharmos a ação do cumprimento do mandado de reintegração de posse de um prédio particular na avenida Ivo do Prado, no centro, que estava ocupado desde novembro do ano passado por militantes da chamada Ocupação Mulungu.

Após a ação de reintegração realizada pela Polícia Militar de Sergipe, nossa equipe - a qual ressalto não ser citada no processo, mas atuar como suporte às famílias -, imediatamente se colocou à disposição para atender as 28 famílias presentes no local, das quais 25 foram direcionadas a dois abrigos mantidos pela Prefeitura de Aracaju e para a Casa de Passagem do Estado, com a qual temos parceria, e as outras três famílias foram encaminhadas para a casa de familiares.

Além dessas famílias, outras pessoas chegaram posteriormente ao espaço se dizendo integrante do movimento e, em momento algum, nos recusamos a dialogar ou explicar a situação da qual também fomos pegos de surpresa. 

Neste contexto, na manhã desta segunda-feira, 24, junto à equipe da Secretaria Municipal da Saúde, levamos para os abrigos que receberam as famílias acolhidas os protocolos de testagem para a Covid-19, entretanto nos deparamos com a evasão dessas famílias, onde 15 permanecem acolhidas por nós, as outras 10 pediram desligamento na mesma noite, alegando ter como se manter fora dali. 

Reafirmo que se trata de uma ação judicial, a qual o compete ao Estado. Eu, enquanto secretária, não tenho medido esforços para ajudar e ouvir. Fui agredida verbalmente e desacatada, mas jamais agi da mesma forma. 

Prezo pelo respeito e sempre buscarei trabalhar por ele, por isso reforço que a Assistência Social de Aracaju já havia estabelecido diálogo com representantes da ocupação em 12 de março, de modo a identificar o perfil dessas famílias, as quais ontem também identificamos que novos integrantes passaram a participar da ocupação, sendo a grande maioria homens, solteiros, bem como aposentados, e outra parte beneficiários de auxílio emergencial federal ou, até mesmo, recém-cadastrados no Auxílio Municipal Emergencial - AME”.

 

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