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Crítica literária - “Caderno Croqui”: a poesia camaleônica e luminosa de Ronaldson
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“Caderno Croqui”, 172 páginas, saiu este ano pela Editora Mondrongo, com ilustração do próprio Ronaldson

[*] Maria Tiah Souza Alves da Fonseca

Helena Schneider cita, na produção alemã “Harper Lee” ‘To Kill a Mockingbird”’, 1960, cujo romance de Lee deu origem ao filme homônimo, em 1962, e ganhador de Oscar, que, ao contrário do que se pensa, nem sempre a criança esteve na literatura.

Assim, complementa a autora, foi Marc Twain, o excêntrico escritor americano (1835-1910), que introduziu a perspectiva da criança na literatura com o romance “As Aventuras de Huckleberry Finn”, lançado em 1876. Percebe-se, naquela obra, uma linguagem mais coloquial, mais próxima do universo infantil e distante da petulância da literatura, digamos, adulta.

Na obra, o herói-menino de Twain finge-se de morto para escapar das obsessões do pai. Nesse caminho, encontra Jim, um escravo foragido. Juntos, irão viver fantásticas aventuras ao longo do rio Mississippi. A busca é a liberdade de alma e de corpo.

Em 19 de novembro de 1967 nasce em Aracaju José Ronaldson Sousa. Artisticamente, ele varre fora o pré e o sobrenome, e adota apenas Ronaldson. É bacharel em Letras e em Direito e servidor do Poder Judiciário do Estado de Sergipe.

A criança, saibamos, é aquele ser de percepção apurada e quase isento de culpa por ser quem o é. Portanto, atua mais livremente. E, ao lermos e revisitarmos o poeta sergipano Ronaldson, em seu “Caderno Croqui”, de 2021, pela editora baiana Mondrongo, 171 páginas, temos a impressão de sobrevoar um asteroide, no qual, sob a égide da criança, a liberdade de expressão voa alto.

Nele, o campo imaginativo é vasto e colorido, como no poema “Distância”: “No olhar/ a íris sustém um mundo aguado/ um arco-íris pairando esvanecido./ A tristeza é um diamante”. Ou no poema “O Viver”: “A peneira na janela/ quase caída/ coando o sol/ e os dias da vida”. 

Dita por muitos, a poesia ronaldsoniana referenda o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), cuja “poesia da pedra” foi tachada de antilírica, hermética, de linguagem objetiva e racional. De acesso não muito fácil para alguns, sobretudo para os desavisados - a do João, não a deste sergipano que lhes trago.

Mas quem lê “Caderno Croqui” enxerga um poeta com braços abertos de Peter Pan. Incompreendido, em parte, pela comparação cabralina, Ronaldson diferencia-se da esfera concretista de João Cabral de Melo Neto, excepcionalmente na temática e no nível de linguagem -acessível, embora permaneça o “catar feijão”, porque, em Ronaldson, as palavras não sobram e nem faltam: têm a medida exata. No todo, sobressai o culto ao poeta maranhense Ferreira Gullar (1930-2016), cuja produção cultural é vasta na historiografia brasileira.

Em 1997, no instante em que lançava “Questão de Íris”. Na foto, vê-se Tonho Amaral, Irmão, Hortência Barreto e Vera Lúcia

Assim, destaca-se, em Ronaldson, a preocupação ontológica, com os caminhos que nos espreitam. É o poeta do fim do mundo, atento à história e às rosas de Hiroshima, tal qual no poema “Profecia”: “Cadê a vida?/ Só vejo a névoa/ da louca sinfonia/ e do tétrico brilho/ das centelhas bélicas/ pois a vida sucumbiu”. Ou no poema “Objeto”: “Na gaiola, o pássaro e seu canto/ PRESOS!”. 

Conforme citou o escritor sergipano Antônio Carlos Viana (1944-2016), Ronaldson mescla lirismo e objetividade, um traço difícil de ser esculpido - e aí é mais justo ver nele a íris de Ferreira Gullar, seu recorrível espelho da verdade, do que as digitais do cerebral João Cabral.

Entre lirismo e objetividade, marcados por uma profunda capacidade imagética, a altivez poética perpassa seus outros dois livros: “Questão de Íris”, de 1997, e “Litorâneos”, de 2006, escritos depois, mas publicados antes de “Caderno Croqui”, que trazem a produção dos anos 80 deste poeta, de quando ainda era um imberbe. 

Entrementes, como poesia também é musicalidade, porque é um preceito inerente às palavras, o poeta ainda explora o sonoro da cadência silábica. Ouvido de músico! Exímio conhecedor do ofício de escrever, Ronaldson mantém o segredo do texto - para bem lembrar a poeta sergipana Iara Vieira (1949-2003), que defendia o princípio de que o escrevedor não deve dizer tudo.

Haverá de deixar sempre o mistério das palavras e o tônus das descobertas, e reconstruções, ao encargo do leitor, como o faz nos versos de “Croqui de Inverno”: “Pregaram um bule já velho/ numa esguia árvore do quintal/ sustentado assim oblíquo/ num poder de asa/ o prego ferindo/ o tronco do pobre vegetal/ Tristeza é no inverno demasiada/ A chuva traz peso e dor/ quando pelo bico feito fonte/ o bule sangra fino, cristalino”.

“Questão de Íris”, primeiro livro de Ronaldson a ser publicado. Foi em 1997

Ao pousarmos os olhos no erotismo da obra, encontramos um sexo velado, pueril até - quando as imagens e sensações mesclam-se ao desejo-lírico do poeta, a exemplo do poema “Lascivo”:

Mas outra coisa em mim
mais    débil
oblí  quo      
te  sa
re  te  sa
te  sa
se  per   turba
lat   eja

A plasticidade em “Caderno Croqui” traz um dos principais traços da poesia desse poeta, que explora essa tendência em “Gradação”, poema que alarga a extensão métrica e o viés gullarino: “Mistura-se em tudo/ o dia que/, sem ferir/ por mim passa/ não,/ se arrasta/ como água sobre chão seco (até vermelho)/ inunda e rasga em rio/, em córrego/ em mar/ azul e salgado/ mar do teu olhar prenhe de pranto/ Mar (o mijo de Deus) pedaço de céu dissoluto/ Mar, espelho do céu ocupando um pássaro e seu/ voo tênue com brisa”. Sim, não nos esqueçamos de que Ronaldson traz consigo, em paralelo ao poeta, um artista visual de traços personalizados, inconfundíveis e marcantes.

O garoto Ronaldson, em pose de Primeira Comunhão, aos 12 anos, em Tucuruí, no Pará. O pai era técnico em construtoras e rodou pelos Estados de São Paulo, Paraná e Pará

Em “Caderno Croqui”, páginas e páginas são dadas às gradações temáticas e visuais. Consequentemente, surge algo de prosa desse poeta que também é o desenhista, que capta o mundo pelo olho, como se um camaleão - além de determinadas marcas tipográficas que formam um “efeito de sentido”. Imagens e significâncias: valores ambíguos da arte.

Ronaldson é o poeta cabralino - ou seria gullarino? - porque escapa do quadrado e circula por épocas e formas diversas, a exemplo do poema-piada, cultuado a partir do modernismo brasileiro de 1922, explorado, em “Caderno Croqui”, no poema “Paixonite”: “O amor deixa o ouvido/ T  N  O/ T  O”.

E, ao longo do livro, escorregam em nossas mãos os ‘haicais’, forma curta originária da poesia japonesa que prima pelo “corte” dos excessos, quando, em Ronaldson, denota equilíbrio. E, sendo a poesia um texto de linguagem densamente condensada, como prescreveu, no ABC da Literatura, o crítico literário americano Erza Pound (1885-1972), “Caderno Croqui” atende a essa sutil especificidade.

A preocupação com o social, sempre presente no olhar desse poeta, surge, entre outros, em “Êxodo Rural”: “Sede, rio, mandacaru, fruta do ano./ Tudo num cheiro seco/ Esparso no coletivo urbano”. Nesse âmbito, teremos não o “poeta da pedra”, cabralino, e sim o poeta dos tempos – haja vista repertórios e passagens referentes ao tempo percorrerem quase toda a obra. E sentiremos o degradante, a decomposição das bananas, que incendia a poesia de Gullar.

Os repertórios ronaldsonianos denunciam as agruras pelas quais passa o ser humano e a nossa impotência diante do relógio. Destarte, Ronaldson é o poeta que vê a flor no asfalto, como se lhe sugerisse Carlos Drummond de Andrade.

Sensibilidade feminina? Também. É a poesia do Yin-Yang, filosofia chinesa do taoísmo que expõe a dualidade do universo e a busca incessante pelo “outro”, como forças opostas que se complementam. Segundo este ponto de vista, o homem é quente - Yang -, e a mulher é fria - Yin.

Diríamos então que a poesia de Ronaldson é “quente”, é solar, mexe com nossos sentidos. É uma poesia que nos deixa perenemente em estado de alerta. Contudo, possui ainda uma sensibilidade feminina, é lunar, fria, e acalma-nos na escuridão para que possamos refletir.

O contraditório que, na arte, prima pela originalidade, a exemplo do poema “Inerente”: “Algo me traz o arrimo/ nesta hora dolente de/ medo da vida./ A lembrança de um cadáver/ ou algum poema morto”.   

Em 2006, com “Litorâneos”, Ronaldson ganha o Prêmio Santo Sousa de Poesia pela Secretaria de Estado da Cultura de Sergipe

Ao término dessa primeira leitura, o olhar do poeta finca-se em nós, enquanto buscamos nos metamorforsear para escapar das verdades que nos assombram - e que ele tão bem está a brandir em tudo que rabisca ou risca. (Basta ver os traços que ele dominicalmente exibe num quadro de ilustração de poemas de Jozailto Lima, outro ilustre poeta sergipano).

Agora, já internalizamos o olhar camaleônico de Ronaldson, o olho de quem consegue perspectivas duplas do mundo circundante. O poeta que se camufla em muitos outros para melhor representar o objeto capturado. Plasticidade em foco! Assim como o camaleão, a poesia ronaldsoniana utiliza-se do visual para se comunicar. Ele, magistralmente, amplia a imagem mediante o texto poético, e o comum torna-se incomum. Isto é arte em qualquer parte.

Por fim, sugiro que, para se fazer justiça a tudo isso dito aqui e a tudo o que de fato representam Ronaldson, sua poesia e sua lida cultural, que ninguém leia esse “Caderno Croqui” sem antes devassar o generoso e assertivo prefácio de 12 páginas - “Caderno Croqui: uma arte, dois ofícios” -, grafado por Marcos Moura Vieira, um poeta e intelectual da geração do próprio Ronaldson que Sergipe emprestou para Pernambuco.

“Ronaldson Sousa é um artista que labora a palavra na matéria do verbo e do traço pictórico, faz assim desde o início da sua lida artística: enfrenta a batalha de criar uma só arte na rotina de dois ofícios: de poeta e de artista visual”, escreve Marcos Moura Vieira na abertura do texto. E Marcos está corretíssimo nessas constatações.

[*] É poeta, pesquisadora, mestra em Literatura pela Universidade Federal de Sergipe e secretária executiva da Universidade Federal de Sergipe, na qual muito já lecionou.

 

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Telma
Excelente resenha
Maruze Oliveira Reis
Caderno Croqui facilita o correr das palavras , do crítico atento á grandeza da poesia que o poeta Ronaldson entrega , generosamente aos leitores. Excelente resenha.