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Opinião - A propósito dos 100 anos da Semana de Arte Moderna: o caráter de Mário de Andrade e os preciosismos de Ulisses

Com Macunaíma, Mário de Andrade tenta reinventar o Brasil: não foi compreendido

[*] Maria Tiah Souza Alves da Fonseca

Ao professor José Miguel Wisnik -  a quem peço licença para falar de Macunaíma

A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos em que Macunaíma era o grande imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida - epílogo de Macunaíma.  
Se a literatura modernista surge em 1922 com a excêntrica obra Ulisses, do irlandês James Joyce, agora, 100 anos depois, a leitura de Macunaíma, do paulistano Mário de Andrade, lançada em 1926, ainda suscita preconceitos e amplia estigmas que cerceiam a obra latino-americana. Mas o que tem a ver Ulisses com Macunaíma? Tirante a dificuldade da leitura, das referências nem sempre simplórias, e da genialidade dos autores, fica o universo político-ideológico.
Em determinados nichos evangélicos e não aleatoriamente dos comparsas bolsonarianos, Macunaíma faz parte do Index Librorum Prohibitorum, expressão latina traduzida como “Índice dos Livros Proibidos”, que engloba leituras anticlericais, heréticas - de heresias - e lascivas. Iremos aqui traduzir “lascivas” como sinônimo de homossexualidade.

Aprovada pelo Concílio de Trento em 1559, na vigência do Papa Paulo VI, essa primeira versão torna-se uma prova cabal na versão Sherlock Holmes: “Elementar, meu caro Watson! Está tudo junto e misturado”. Cinco séculos depois, censura e arte cristalizam e documentam exímia relação entre clero, poder e cultura. Como bem elaborou o filósofo francês Michel Foucault, à Igreja caberia cuidar da fé, contudo, os caminhos das orações cruzam-se com os da vigilância dos costumes e das práticas cotidianas.

Dessa forma, ‘misthurando’ as coisas, Macunaíma inaugura um método romanesco, tal qual Ulisses -, embora naquele as referências exploradas não sejam herméticas e a linguagem, distante dos “preciosismos” de Ulisses -, traz o cunho folclórico.

Ao centralizar a obra no experimentalismo linguístico, Mário de Andrade distancia-se de Joyce por negligenciar o papel do narrador que, em Ulisses, é o cume do romance. Compreendido então o fato do marketing cultural, que sempre pleiteia para segundos planos as criações artísticas de tendência popular, ter recebido Macunaíma com olhares oblíquos.

É o próprio Mário de Andrade quem reclama da recepção da obra. Para ele, “incompreendida”. Distante do universo nem sempre mítico do “herói de nossa gente”, Macunaíma muito brigou para ser aceita na década de 20. Enquanto Ulisses já chegava aos jornaleiros aclamada pela crítica. Embora Macunaíma não tenha sido uma criação hic et nunc de Mário de Andrade e sim uma referência do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg -1872-1924 -, cujos estudos na América Latina muito contribuíram para a cultura indígena local. Especificamente, na Venezuela e, no Brasil, na Amazônia. Koch-Grünberg morre em Roraima por ter contraído malária.

Antes de nascer esse nosso (?) herói às avessas, havia um grande silêncio - tal qual narra o Gênesis 1:2, e Macunaíma vai dar seu grito na Amazônia, “no fundo do mato virgem”, onde nasceu “preto retinto como a noite”. E era “uma criança feia”. Surgia um épico sem herói?! Nas vias tradicionais, sim.

Longe de ser uma leitura fácil, a suposta rapsódia andradiana, porque não tem gênero definido, traz mitos de vertentes variadas, cria mitos, a exemplo da miscigenação brasileira. Conforme Mário de Andrade narra, culpa das águas do rio, suficientes apenas para lavar um tantinho de um transeunte - que ficou todo sujo e preto, restando somente as palmas das mãos e as plantas dos pés brancas.

E essas águas que faltaram para a tribo, parecem ter sobrado para a família do vice-presidente Mourão que, muito esperto, banhou-se antes de outros - fato que permitiu aos seus descendentes de terceira geração embranquecerem até os olhos, porque estes ficaram “azuis”. Cita o professor aposentado, crítico literário e musicólogo José Miguel Wisnik, USP, para quem “Mário de Andrade foi o intérprete do Brasil”.

Apesar das referências desconhecidas para muitos, podemos ler Macunaíma sem conhecer tais referências, mas não podemos estudá-la sem os devidos conhecimentos prévios. E essa premissa tanto serve para Ulisses, de Joyce, quanto para a obra de Mário de Andrade, ainda que a obra de Joyce estivesse envolvida, ou ameaçada, por questões bélicas. 

Macunaíma, pasmem! “o grande mal”, surge da memória do narrador, que escutou as peripécias de um papagaio, conforme também relata minuciosamente o professor José Miguel Wisnik. Um dos epítetos famosos da obra é o “ai que preguiça”, sempre falado pelo herói diante de qualquer obstáculo ou ação a cumprir. E até para “brincar” com as índias o “imperador da mata virgem” cansava. E parava no ápice do ato.

Criando uma mistura do imaginário com o real, Mário, um profundo conhecedor de música erudita, não se esquece de mencionar Tia Ciata - 1854-1924 -, uma mãe de santo baiana e “mãe do samba”, cozinheira que migrou de Salvador para o Rio de Janeiro e muito contribuiu para o surgimento do samba carioca, cuja história cruza-se com preconceitos de todos os tipos. Inclusive o musical.

Tia Ciata consagrou-se como a dama das comunidades negras após a abolição da escravatura e uma incentivadora fervorosa do samba. Constantemente, sua casa servia de abrigo para o encontro de sambistas, quando a prática de tocar violão, um instrumento símbolo de vagabundagem, era coibida no Brasil. A história de Tia Ciata funde, portanto, um Brasil que conhecemos.

Posteriormente a Tia Ciata, Mário de Andrade. um mulato extensamente respeitado pelo caráter e saber enciclopédico, a ponto de ficarem em segundo plano os bochichos de sua homossexualidade, foi também um apreciador da literatura e da filosofia alemã, que lia no original. Sem tirar o merecimento de James Joyce, Mário de Andrade é o maior polímata do Brasil, porque foi tradutor, crítico literário, historiador de arte, fotógrafo, professor, poeta, romancista, folclorista, e pioneiro na etnomusicologia.

Em suma: o “cabeça” da Semana de Arte Moderna, em 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, Mário de Andrade é o Senhor dos Anéis brasileiro, o poeta citado em duas páginas seguidas no livro “Constelação de Gênios - uma biografia do ano de 1922” - Objetiva, 567 páginas e tradução de Camila Mello -, do inglês Kevin Jackson - 1955-1921 -, escritor e cineasta que o comparou ao poeta americano T. S. Eliot.

Mário foi “trezentos-e-cinquenta”, mas é sua ligação com a música que se enrama por toda sua obra. E é justamente a complexidade e a polifonia da música que Mário leva como pano de fundo pelas duas décadas que circunda, dos anos 20 aos 40. Mediante o vasto conhecimento musical, ele compreende que a cultura de um país só pode ser explorada a partir de suas origens, no caso, o folclore, haja vista estes e outros registros: “piá-curauá—Maanape-Jiguê-Currupira-icamiaba-cachiri-pajuari-ubá-mutá-aimará-samburá-Macunaíma faz ‘juque’”.

Entretanto, sua luta era o extremo político-ideológico, porque queria mudar o modo de o brasileiro ver o país; queria que todos dessem valor ao que vinha de ‘baixo’ porque era original. Assim, podemos afirmar que Mário de Andrade - “infelizmente e felizmente”, como disse Guimarães Rosa em um de seus contos, foi o maior ativista cultural deste país. E pensar em cultura, para muitos, é querer que a obra parta de cima, das academias, dos grandes críticos de arte e de literatura.

No entanto, para Mário de Andrade, a identidade nacional somente é possível com a tomada de consciência das tradições populares. Eis o gol perdido na trave, o calcanhar de Aquiles. Ponto mortal! Em contrapartida, na literatura irlandesa Ulisses trazia nada menos que o ‘classudo’ Homero em sua base; e vem Mário de Andrade com um índio catingueiro…

No tocante à recepção do ovacionado romance de James Joyce, em 1922 houve toda uma logística montada pelos maiores críticos do universo literário, a exemplo de Erza Pound e T. S. Eliot. Já Macunaíma foi o poeta popular, o rapsodo que escutou uma história cabeluda de um papagaio e decidiu contá-la do jeito que o povo gosta de ouvir.

Mário de Andrade constrói a sua narrativa partindo da oralidade - que é o primórdio de toda e qualquer literatura -, e faz do experimentalismo linguístico - que é o princípio fundador do modernismo no Brasil –, uma etnografia brasileira, reconfigura as nossas origens: “/Bamba querê/Sai Aruê/Mongi gongo/Sai orobô/Êh!...”/ é uma das inúmeras cantigas da obra, das quais muita gente não entende bulhufas. Mas saibam que, em Ulisses, de Joyce, também há inúmeras cantigas que ninguém entende por que estão lá. Neste caso, são outros quinhentos.

Macunaíma é/foi uma tentativa de reinventar o Brasil. É a busca de uma identidade nacional com base nas representações populares. Contudo, não seria tão original porque a personagem teria sido retirada dos escritos de Koch-Grünberg, o que fez a obra ser tachada de plágio na época do lançamento. O fato é que, no Brasil, ninguém fez nada semelhante.
Em uma entrevista de 1925, Mário de Andrade declarou: “nós só seremos deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de cultura”. Na busca de uma linguagem de vanguarda e da formação de uma cultura nacional, Mário de Andrade colocou a cabeça a prêmio, tentou redescobrir um Brasil inventado pelos brasileiros e não pelos europeus. No contexto do ‘ambiente’, Macunaíma apresenta um ‘tempo’ e ‘espaço’ - como categorias literárias - tanto legendário quanto real. Tudo devidamente bem pesado.  

Em Vire e Mexe Nacionalismo (Companhia das Letras), disse Leyla Perrone-Moisés de Macunaíma: “É uma hipótese, um estudo, uma reflexão, e sobretudo uma busca”. Não “sem lenço, sem documento”, o livro foi escrito em apenas seis dias. Enquanto pensava a obra, Mário viajou pelo interior do país para melhor conhecer o Brasil e sua ancestralidade; além de ter pesquisado em Koch-Grünberg a cultura indianista. A eloquente intenção de Mário de Andrade era propor uma conciliação entre o estético e o ideológico, e nesse impasse permaneceu até sua morte, em 1945.

Em Macunaíma, assistimos a diversas metamorfoses, a mudanças físicas e psíquicas dos personagens na tentativa de explicar o inexplicável da cultura brasileira; além de Macunaíma carregar aspectos das três raças: a negra, a branca e a indígena. E, em meio ao lendário e ao real, Mário de Andrade busca esse mito fundador no “murmurejo do Uraricoera”, ou seja, no rio amazônico.

Das críticas ferrenhas suscitadas na época do Modernismo, Mário de Andrade, em uma das cartas endereçadas a Manuel Bandeira, cita que “é justo nisto que está a lógica de Macunaíma: em não ter lógica”. E complementa: “Macunaíma é uma contradição em si mesmo, o caráter que ele demonstra em um capítulo, desfaz noutro”. E é justamente o epíteto da obra, “o herói sem nenhum caráter”, que continua sendo levianamente interpretado por gregos e mourões.

Ao fim de sua vida, o “Papa do Modernismo”, que se foi com um infarto, em 1945, partiu carregando a culpa por ter escrito Macunaíma. Nesse âmbito, se a literatura serve como redenção, purga os nossos pecados, Macunaíma não teve esse privilégio para Mário de Andrade. O fato é que esse anti-herói de nossa gente, porque não possui caráter elevado, se cansa desse nosso indefinível, porque “Macunaíma não se presta a nenhum idealismo nacionalista ou idealista”, cita Perrone-Moisés.

E como cantou o samba enredo da Portela, em 1975: “Vou me embora / Vou-me embora / eu aqui volto mais não / Vou morar no infinito / e virar constelação / Macunaíma, índio, branco, catingueiro/”, tema cantado pelo também lendário Jamelão. Macunaíma então, cansado de tudo, decide virar constelação. Em uma carta a Fernando Sabino, de 1942, Mário confessa seu desgosto com Macunaíma, o personagem, “com a falta de organização moral dele, (do brasileiro, que ele satiriza)”.

E Macunaíma, em vez de se regenerar, prefere o “brilho ‘inútil’ das estrelas”, desabafa Mário de Andrade em suas cartas. Ainda que seja uma narrativa incomparável, o desgosto de Mário também muito se deu com a recepção da obra, INcompreendida, golpeada por vários lados, e não simplesmente o da crítica; talvez por abordar determinadas ideologias sem representatividade política.

E, nesses tempos de jogar ouro nas Bíblias, a queimação de ideologias é uma fogueira de livros - profanos - bem ao estilo Fernanda Montenegro. Uma das incompreensões da obra, que está no epíteto “o herói sem nenhum caráter”, em sua forma ambígua também significa a ausência de identidade, não tem caráter porque ainda não adquiriu características de si, como bem citou o professor José Miguel Wisnik em “Macunaíma e o Herói do Enigma às Avessas”.

Notório e vulgarmente, o problema da literatura brasileira está nos “achismos”. Ou seja, opiniões passionais sedimentadas pelo superego, posicionamentos desprovidos de percepção teórica que, em vez de construir uma linha científica de pensamento - porque a arte também está para a ciência -, destrói a real percepção do leitor, e amplia, aleatoriamente, uma abstração do eu. Nonsense em desvario.

Prova disso é a declaração do vice de Bolsonaro, Mourão, em 8 de agosto de 2018, quando citou: “Infelizmente, gostamos de mártires, de líderes populistas e dos macunaímas”. Eu cá, se me topasse com Mário de Andrade, diria um “Optchá!” para saudá-lo, na certeza de que ele sorriria, feliz com a mistura, bom sabedor das coisas como sempre foi e com o caráter que o compunha. E Ulisses? Uma obra divisora de águas na historiografia literária, difícil de compreender – mas não para a crítica da época de 1922.
    
[*] É contista, poeta e mestra em Literatura pela Universidade Federal de Sergipe. Atualmente, é secretária Executiva da UFS/Cesad, na qual muito já lecionou.

 

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