José Rollemberg Leite Neto: “Ninguém abre um Vade Mecum e encontra definição de ativismo”

Entrevista

Jozailto Lima

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José Rollemberg Leite Neto: “Ninguém abre um Vade Mecum e encontra definição de ativismo”

“Falhamos diária e miseravelmente como Estado Constitucional”
27 de outubro de 2019 - 8h


O advogado José Rollemberg Leite Neto conseguiu, aos 44 anos, elo sólido com uma maturidade que lhe empresta ares de um decano do direito e da observação sensata das coisas do mundo na sua esfera profissional e, por vezes, para além dela.

E do alto desse faro, José Rollemberg Leite Neto lê com olhos graves-gravíssimos o momento Brasil - e não apenas na esfera judiciária na qual transita, que é a do direito político, sobretudo o de fundo eleitoral.

Mas sem afetação quixotesca. Não se espere dele apologias ao fim do mundo e nem populismos baratos, desses vendidos em quentinhas de esquina. Para começo de conversa, José Rollemberg Leite Neto vai na medula da admissão, com acertada restrição técnico-institucional, da existência de um ativismo judicial no Brasil.

“Vamos começar por entender o que é ativismo judicial. Ele não é um conceito do direito, mas sobre o direito. Mais precisamente sobre uma determinada forma de comportamento do Poder Judiciário. Ninguém abre um Vade Mecum e encontra a definição de ativismo”, diz ele.

Ele até admite uma certa relatividade aí. “Há uma confusão enorme sobre como e quando o fenômeno (ativismo) está ocorrendo. Muito do que se diz ser atuação ativista é, na verdade, o exercício de competências constitucionais dos julgadores”, diz.

“Em resumo, ativismo judicial seria, em linguagem simples, a extrapolação de competências pelo Poder Judiciário no momento da decisão e decorre de uma má interpretação dos limites dados pelo ordenamento jurídico para essa mesma atuação”, reforça José Rollemberg Leite Neto.

Mas, apesar desse ir e vir de cuidados, este advogado derivado de um tronco familiar político sergipano não tem dúvidas da existência de alguns excessos - embora não circunscreva isso somente à esfera judicial. “O Judiciário é a última porta do desesperado. Erra, lógico. Mas a democracia depende dele e, na média, age bem”, pondera.

“O Judiciário não edita decretos facilitando o porte de armas em uma das sociedades mais violentas do mundo. O Judiciário não destrata minorias publicamente. O Judiciário não promete suspender o cumprimento do mandamento de demarcação de terras indígenas fixado na Constituição. Quem cassou uma presidente eleita democraticamente e sem crime de responsabilidade não foi o Judiciário”, diz Leite Neto, cutucando de uma só tacada os três podres da República.

Mas na área específica do Poder Judiciário, José Rollemberg Leite Neto reconhece sem titubeios uma certa promiscuidade em importantes atividades desse Poder, como no caso da Lava Jato. E o faz metaforicamente, mas bem limpidamente.

“Até o Cego Aderaldo vê essa promiscuidade”, diz ele, em resposta à pergunta sobre se viria demonstração de promiscuidade entre juízes e acusadores nas revelações do The Intercept. “Você gostaria de ser julgado por quem combina estratégias com a parte contrária? Deus, em sua infinita misericórdia, nos livre de estar numa situação dessas”, reforça.

Apesar dessas visões, Zé Rollemberg Neto não fecha questão em conceitos que fulminem fatalmente a ninguém e nem a nada dos Poderes que sustentam a gauche República brasileira. Diz, por exemplo, que o STF é uma parte muita exposta do Judiciário, revela que tem uma inveja saudável da importância de um juiz e faz uma defesa pungente da Constituição do Brasil, por achar que ela é, sim, brutalmente vilipendiada desde “sempre” e por “demais”.

“Sempre foi. Falhamos diária e miseravelmente como Estado Constitucional. Fracassamos desde o mais elementar preceito constitucional, o da igualdade. Um negro e um branco, um homem e uma mulher, um heterossexual e um homossexual, um rico e um pobre, um nordestino e um sulista, um empregado e um desempregado ou precarizado, não têm a mesma expectativa, nem a mesma qualidade de vida, no Brasil”, afirma Leite Neto.

“Essa diferença é uma nódoa em nosso caráter nacional. Vou lhe fazer a pergunta fundamental: todos somos realmente iguais perante a lei? É preciso ser ingênuo para crer que somos. Um mínimo de igualdade material é o pressuposto de uma cultura de liberdade”, completa ele.

José Rollemberg Leite Neto nasceu no da dia 15 de março de 1974 - dia em que o avô que lhe empresta o nome tomava posse no segundo mandato de governador de Sergipe -, fez Direito pela Universidade Tiradentes em 1998 e se tornou advogado no mesmo ano sob o carimbo 2.603 da OAB/SE.

Desde a primeira década deste milênio ele está em Brasília, onde é sócio de Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados a partir de 2006 e é muito demandado para batalhas na esfera do direito eleitoral. Ele é casado com Alba Valéria Fontes Leite e é pai dos adolescentes Bernardo Fontes Rollemberg Leite, 15 anos, e Brisa Fontes Rollemberg Leite, 12.

Ternura antiga: sob o olhar do avô governador em pleno carnaval de 1977
Nasceu no da dia 15 de março de 1974 - dia em que o avô que lhe empresta o nome tomava posse no segundo mandato de governador de Sergipe

O JUDICIÁRIO NÃO PODE SER O BODE EXPIATÓRIO
“O Judiciário não edita decretos facilitando o porte de armas em uma das sociedades mais violentas do mundo. O Judiciário não distrata minorias publicamente. O Judiciário não promete suspender o cumprimento do mandamento de demarcação de terras indígenas fixado na Constituição”

JLPolítica - Naturalmente, o senhor acha injusto que o Judiciário Eleitoral de Sergipe venha a desconstituir, por exemplo, a eleição de Belivaldo Chagas ao Governo do Estado com uma das maiores vitórias já obtidas em Sergipe. Mas a fundamentado no quê?
JRLN -
Deixe eu lhe dizer uma coisa. Eu não comento processos em curso. Minha procuração me outorga poderes para falar nos autos, não fora deles. Sei que isso é démodé, que as pessoas não levam muito a sério esse silêncio obsequioso hoje em dia, mas fui educado nessa prática e vou ficar fiel a ela. Para não deixar você sem resposta e com isso alimentar quem imagine que o governador Belivaldo Chagas e a vice-governadora Eliane Aquino não têm bons argumentos, eu lhe digo apenas o seguinte: houve um voto vencido no julgamento de cassação dos mandatos. Um voto lapidar, subscrito por um magistrado criterioso. Ele sintetiza tudo que pensamos acerca de um julgamento justo para essa causa. Certa vez, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, referindo-se ao ministro Marco Aurélio, lembrou que “a História tem registrado que, nos votos vencidos, reside, algumas vezes, a semente das grandes transformações”. Eu creio nisso.

JLPolítica - Mas a causa de Belivaldo Chagas tem chances de ser favoravelmente a ele no Tribunal Superior Eleitoral?
JRLN -
Vamos consertar a sua pergunta: a discussão ainda não está encerrada em Sergipe. Tenho a honra de haver sido substabelecido pelos advogados Paulo Ernani e Jairo Henrique nessa defesa e de subscrever com eles os embargos de declaração cuja apreciação o Tribunal Regional Eleitoral ainda não concluiu. Somo a isso a alegria de ladear esse trabalho com o Dr. Fabrício Medeiros, na minha opinião o melhor eleitoralista do país e, para nosso orgulho, um sergipano. Tenho, mais do que esperança, convicção de que o Tribunal evoluirá o seu ponto de vista e reconhecerá que não houve abuso de poder político. O reconhecimento de uma pretensão em juízo é a soma de dois elementos: sede de justiça e perseverança paciente. Temos um direito excelente, uma fé invulnerável nas instituições e uma paciência de Jó.

JLPolítica - Por que o senhor deixou Sergipe para advogar em Brasília?
JRLN -
Por três razões. Porque recebi o convite do melhor advogado do Brasil, o Dr. Eduardo Ferrão, para trabalhar com ele. Porque tive o incondicional apoio de minha esposa, Alba, e a constante compreensão de meus dois filhos, Bernardo e Brisa, tão sergipanos quanto eu e ela. E porque tive um sócio generoso, Geraldo Resende, que não criou qualquer dificuldade para que eu me transferisse para a Capital Federal.

JLPolítica - Quanto por cento das suas atividades advocatícias em Brasília são demandas por sergipanos?
JRLN -
Muito pouco. Trabalho fundamentalmente para amigos que deixei aqui. O que eu intimamente lamento. Advogar em Sergipe é poder visitar meus pais, meus irmãos, meus parentes, meus amigos, ver a praia de Atalaia e o Rio Sergipe. Não é pouco.

Na tribuna do STF, defendendo o deputado José Priante

CORRUPÇÃO TEM MUITO A VER COM DESIGUALDADE ESTRUTURAL”
“Nossa corrupção é uma decorrência, em extensa medida, de nossa cultura patrimonialista, que faz do Estado algo de que alguém se apropria, ainda que temporariamente.
No direito administrativo brasileiro, a investidura em uma função, emprego ou cargo público materializa-se com a posse”

 JLPolítica - A escalada autoritária existente no Brasil pode e deve ser atribuída somente a um dos três poderes - no caso, ao Judiciário?
JRLN -
Evidente que não. Nem pode, nem deve. O Judiciário não edita decretos facilitando o porte de armas em uma das sociedades mais violentas do mundo. O Judiciário não destrata minorias publicamente. O Judiciário não promete suspender o cumprimento do mandamento de demarcação de terras indígenas fixado na Constituição. Há um velho truísmo muito citado por nós, advogados: o Judiciário é a última porta do desesperado. Erra, lógico. Já falamos disso. Mas a democracia depende dele e, na média, ele age bem. Quem cassou uma presidente eleita democraticamente e sem crime de responsabilidade não foi o Judiciário - só pra lembrar uma contribuição recente do Legislativo à desvalorização da democracia entre nós.

JLPolítica - A afirmação de que política é a arte do consenso teria prevalência nos dias de hoje?
JRLN -
Como não? A política é uma ferramenta riquíssima de produção de soluções coletivas. Consenso absoluto numa sociedade plural não existe. Não é sequer utopia. É distopia. É orwelliano. É algo do “Admirável mundo novo” de Huxley. Num mundo de diferenças e divergências, o que deve haver é diálogo e respeito. Isso, sim, tem sido depreciado pela prática atual. Mais vale “lacrar”, como se diz vulgarmente, do que ouvir. Mais vale provar pontos que estabelecer pontes. Todos precisamos, e isso vale para nós advogados no fórum também, melhorar a qualidade de nossa comunicação não-violenta.

JLPolítica - Qual é a sua opinião sobre a criminalização da atividade política? Isso serve a quem e ao quê?
JRLN -
Se você criminalizar a política sobrará o quê, Jozailto? A ditadura de alguém. A força pura, bruta, crua e necessariamente perversa. O arbítrio. A violência. A necropolítica tão bem descrita por Achile Mbembe, filósofo camaronês que fala da infiltração do autoritarismo nas sociedades democráticas por meio de um discurso sombrio e de uma prática de apologia da morte seletiva de alvos identificados como inimigos, mas que são apenas dissidentes ou indesejados sociais. A criminalização da política serve aos autoritários, aos ditadores, aos fascistas. Não serve aos homens e mulheres livres, aos democratas e aos pacíficos.

JLPolítica - Seria lícito afirmar que o Brasil vivencia o fenômeno da politização da justiça e a judicialização da política?
JRLN -
Sim. E essa resposta não contradiz a minha primeira nesta longa entrevista. Judicializar a política é, infelizmente, obra dos próprios políticos, que transformaram o Judiciário, que por definição é uma instituição inerte, que precisa ser provocada, em arena permanente de debates de teses que deveriam ser próprias dos parlamentos e praças. E a transferência dessas discussões da ágora para os fóruns judiciários cria o perigoso poder de o julgador substituir ou sobrepor escolhas de poderes legitimados imediatamente pelo voto. E, com isso, preparar campo fértil para o ativismo judicial que mencionamos lá atrás.

Na defesa do ex-governador Marcelo Deda no antigo prédio do TSE

A CONSTITUIÇÃO TEM SIDO A VILIPENDIADA
“Sempre foi. Falhamos diária e miseravelmente como Estado Constitucional. Fracassamos desde o mais elementar preceito constitucional, o da igualdade. Um negro e um branco, um homem e uma mulher, um rico e um pobre não têm a mesma expectativa, nem a mesma qualidade de vida, no Brasil”

JLPolítica - Pelo que o senhor conhece da conformidade do mundo, dá pra dizer que o Brasil é um patinho feio em matéria de corrupção nas vidas pública e particular?
JRLN -
Essa é a pergunta mais difícil que você me fez até agora. Um dramaturgo romano, Terêncio, disse certa vez: “Sou humano e nada do que é humano me é estranho”. É preciso procurar no brasileiro comum a resposta ao seu quesito. Nossa corrupção é uma decorrência, em extensa medida, de nossa cultura patrimonialista, que faz do Estado algo de que alguém se apropria, ainda que temporariamente. Invista algum tempo na leitura do monumental “Os donos do poder”, de Raimundo Faoro, e isso ficará bem claro. Você já reparou na carga simbólica da expressão “tomar posse”? No direito administrativo brasileiro, a investidura em uma função, emprego ou cargo público materializa-se com a posse. Posse. Essa palavra é reveladora de uma mentalidade inteira. As pessoas dizem “o meu cargo”. Como o professor Carlos Britto, o maior de todos os sergipanos vivos, ensina: “Servidor público é servidor do público”. Do público, não de si. A corrupção também tem muito a ver com a desigualdade estrutural, que mencionei há pouco. Sociedades mais igualitárias tendem a ser menos corruptas. As pessoas alcançam seus direitos sem a necessidade de burlas. Elas confiam que serão tratadas com isenção e por isso não precisam fazer nada além do devido. Resolver o problema de nossa corrupção passa por resolver essa questão. Isso, obviamente, não inibe que o sistema jurídico puna severamente corruptores e corruptos, públicos ou privados. Para além de uma questão de moralidade ou de religião, é um tema próprio do direito. Mas, enquanto a sociedade brasileira não começar a resolver o problema da desigualdade, a resposta jurídica à corrupção será um paliativo, eventualmente um espetáculo, nunca uma solução.

JLPolítica - Que leitura faz o senhor sobre o debate da prisão após as condenações em segunda instância?
JRLN -
Eu tenho dificuldade até de entender a razão da existência da discussão. Juro a você. Meu amigo Lênio Streck postou no Twitter esses dias algo assim: “Presunção de inocência: significa ‘presunção de inocência’. Trânsito em julgado: significa ‘trânsito em julgado’. O que se pode discutir à distância é o tamanho do barco. Mas quando duas pessoas olham para um barco e uma vê um avião, alguma coisa deu errado”. A figura é ótima. Não há no sistema de direito positivo brasileiro lugar para a execução provisória e antecipada da pena, porque a Constituição presume a inocência até o trânsito em julgado da ação penal e o Código de Processo Penal não enumera essa possibilidade de encarceramento. A não ser que você chame barco de avião, presunção de inocência de outra coisa e trânsito em julgado de uma outra, palavras limitam interpretações. Você pode achar a regra ruim. Eu não acho. Mas ela vale. E se vale, tem de ser obedecida. Eu posso comprar ou não o seu livro. Mas não posso escolher, como juiz, obedecer ou não ao mandamento do Código de Processo Penal que veda a prisão como antecipação da execução da condenação. O mandamento não padece de inconstitucionalidade alguma e deveria ser o suficiente para tornar essa discussão algo da política, mas não do direito.

JLPolítica - O senhor viria demonstração de promiscuidade entre juízes e acusadores nas revelações do The Intercept?
JRLN -
Até o cego Aderaldo da música de Chico César vê essa promiscuidade. Você gostaria de ser julgado por quem combina estratégias com a parte contrária? Deus, em sua infinita misericórdia, nos livre de estar numa situação dessas.

JLPolítica - O senhor considera que a Lei de Abuso de Autoridade teria sido concebida para impedir os juízes de decidirem?
JRLN -
Sua pergunta contém a resposta. Quem decide se existe ou não abuso é um juiz. Logo, eles, magistrados, decidirão sempre. Um juiz entende o outro. Saberá interpretar a decisão do colega e ver se ali se contém um excesso. É um receio desnecessário o que muitos magistrados têm esse de que a lei produzirá injustiças em massa. Com o tempo, eles perceberão isso. É, como tudo na vida, um aprendizado.

Zé Rollemberg Neto em companhia de advogados, de quem é sócio no escritório.

“SE VOCÊ CRIMINALIZAR A POLÍTICA SOBRARÁ O QUÊ?
“A ditadura de alguém. A força bruta, crua e necessariamente perversa. O arbítrio. A violência. A necropolítica tão bem descrita por Achile Mbembe, o camaronês que fala da infiltração do autoritarismo nas sociedades democráticas por meio de um discurso sombrio e uma prática de apologia da morte seletiva de alvos identificados como inimigos”

JLPolítica - Como neto, de que maneira o senhor recebeu o conteúdo de “José Rollemberg Leite - Trajetória de um homem público”, livro de Dilson Barreto sobre o ex-governador sergipano?
JRLN -
Às lágrimas. Li o livro três vezes antes de ser publicado e mais uma agora, depois daquele lançamento emocionante, em que você esteve, repleto de pessoas admiráveis, que esperaram por horas para colher o autógrafo dessa criatura de alma luminosa. A sensação que eu tive lendo o texto foi a de abraçar meu avô. Você é poeta, pode entender o que estou querendo dizer. Minha gratidão a Dilson é gigantesca. Espero que ele dê essa alegria a outros netos cheios de saudades ao escrever as biografias que mencionou na entrevista que deu a você, há poucos dias. É uma colaboração à memória de nossa terra.

JLPolítica - Na distância e no desterro, o senhor tem tempo de ver a vida política sergipana contemporânea?
JRLN -
Tenho. Sou leitor assíduo dos jornais e portais sergipanos. Mas hoje eu sou eleitor no Distrito Federal porque meu coração, em Sergipe, é dividido. Já advoguei e advogo para correntes políticas antagônicas e aprendi a admirar homens de diferentes lados do espectro partidário. A virtude não cabe em legendas, transborda em várias.

JLPolítica - O senhor reverenciaria alguém?
JRLN -
Para não referir ninguém em atividade, vou mencionar dois titãs da nossa história recente: Marcelo Déda e João Alves Filho. Feliz de um Estado que contou com o serviço desses dois homens públicos. Déda, abatido muito jovem, seria hoje uma liderança política nacional com um talento parlamentar que não enxergo em nenhum dos nossos 594 congressistas atuais. Culto, orador clássico e emotivo, invencível em um debate, desfalca a oposição. Dr. João, maior homem público da nossa história, colhido pela doença quando a sua experiência seria um capital inestimável na busca das soluções que o Estado precisa. Imagine, Jozailto, a reação dele à mancha de petróleo invadindo o Rio São Francisco, uma de suas paixões. O que seria capaz de fazer e mobilizar com aquela energia cívica que o animava! É uma pena que ele não goze de plena saúde nesse instante.

Aqui, Rollemberg Neto com a mãe, Sônia Maria Monteiro Ferreira, no dia em que recebeu a carteira da OAB. O pai é Alberto Silveira Leite, auditor aposentado do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe

O STF NÃO É O QUE MAIS EXORBITA
“O Supremo é apenas o mais exposto dos órgãos judiciais brasileiros. É aquele que tem maior transparência e, por isso, é mais sujeito a críticas. Nós sabemos quem são os 11 do STF, mas não os 11 de Tite. O STF é muito mais sujeito ao escrutínio das diversas correntes de pensamento”

 JLPolítica - Quais as consequências disso para os demais dois poderes - Legislativo e Executivo?
JRLN -
Terríveis. É uma gangrena. Compromete todo o organismo democrático. Do mesmo modo que é criticável um Executivo arbitrário, que edite medidas provisórias e decretos em profusão, amesquinhando o Poder Legislativo, há de se criticar um Judiciário que não entende que o Executivo tem um campo de atuação próprio, decorrente da investidura eleitoral para cumprir compromissos assumidos no processo político. Um prefeito, por exemplo, pode ter assumido o compromisso de pavimentar determinada rua em campanha. O Judiciário, por provocação do Ministério Público ou de terceiros adversários, não pode forçá-lo a fazer isso noutro lugar sem invadir uma esfera de autonomia da administração. Bem assim o Legislativo. Se o Congresso Nacional decide que ninguém deve ser preso senão no trânsito em julgado da sentença penal condenatória, materializando o princípio constitucional da presunção de inocência, é dever do Judiciário respeitar essa deliberação legislativa. Outras interpretações, por mais razoáveis que sejam, devem sucumbir a essa outra, também razoável, do Legislativo. Quando esse respeito fenece, começa o processo de gangrena a que me referi.

JLPolítica - Até onde vão os atropelos das garantias da Constituição Federal pelo STF quando ele promove a interpretação dela?
JRLN -
São onze homens e mulheres. Os erros vão até onde é possível um ser humano errar. Desde simples tropeços gramaticais, a prender quem deveria estar solto. Os erros do Judiciário são tão dignos de compreensão que a própria Constituição Federal diz que eles deverão ser indenizados pelo Estado. Noutros países, o erro da Justiça é insuscetível disso. O que ela diz é o certo, mesmo que errado. Um paradoxo. O Supremo erra, claro. Mas pode se corrigir. Não se deve esperar de ninguém a infalibilidade.

JLPolítica - Mas, como em toda relação, quando alguém excede não é porque outros da mesma convivência escasseiam no cumprimento de suas tarefas e atribuições? Tradução: Executivo e Legislativo não estão deixando de fazer as partes que lhes cabem?
JRLN -
Estão. E o Judiciário também. Preste atenção, Jozailto: você acha normal que um processo dure dez anos ou mais? Eu tenho ações em curso que começaram em 2001 e ainda não viram fim. Ações que eu propus. É isso normal? Penso que não. O Judiciário está falhando, claro. Todo mundo sabe que a carga de processos de um juiz brasileiro é desumana. Que mal há tempo de refletir, ouvir as partes atenciosamente. Entendo isso. O sistema processual permite muitos recursos. É verdade. Isso explica e justifica muita coisa.

JLPolítica - Mas isso não explica tudo?
JRLN -
Não. Isso não explica tudo. Há outros contextos bem dignos de reflexão. A discussão do auxílio-moradia, por exemplo. Ficou anos aguardando decisão. Enquanto isso, o auxílio era pago. No mesmo dia em que o Executivo sancionou o reajustamento do Judiciário, sobreveio a decisão que o cassava. No mesmo dia. Uma coisa compensou a outra, coincidentemente. É preciso, portanto, reconhecer em cada caso a sua especificidade para saber se os poderes estão agindo conforme as suas atribuições ou as extrapolando. Não se deve deixar que as partes abusem, mas também não é o caso de tirar os óculos para não ver que pode haver abusos de quem conduz o processo, também. Voltando ao que você me perguntou. Há omissões do Legislativo? Há. Cadê a lei de greve dos servidores públicos? Cadê a criminalização da homofobia? Cadê um monte de leis que concretizam a Constituição Federal? Cadê o imposto sobre grandes fortunas? Nada. Aí essa omissão tem de ser resolvida judicialmente. É legítimo. Não há ativismo nisso. No caso do Executivo, podemos perguntar: cadê a implementação das políticas públicas que as milhares de leis federais cobram? No caso do momento: como proteger nossas praias e mangues dessa mancha misteriosa de óleo? O que o Governo Federal está fazendo para ajudar Sergipe? É uma omissão também. E bem fez a Justiça Federal em atender o que requereu Ministério Público e determinar medidas que ainda não tinham sido aviadas, penso eu.

Este ano na Praça São Pedro, no Vaticano, com a familia

DO CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL
“Ativismo judicial não é um conceito do direito, mas sobre o direito. Mais precisamente sobre uma determinada forma de comportamento do Poder Judiciário. Ninguém abre um Vade Mecum e encontra a definição de ativismo”

 JLPolítica - O senhor diria que existe hoje um ativismo judicial no Brasil, e que ele seria consequência de que?
José Rollemberg Leite Neto -
Diria. Mas não é uma pergunta fácil. Ela demanda uma resposta longa. Vamos começar por entender o que é ativismo judicial. Ele não é um conceito do direito, mas sobre o direito. Mais precisamente sobre uma determinada forma de comportamento do Poder Judiciário. Ninguém abre um Vade Mecum e encontra a definição de ativismo.

JLPolítica - Essa definição pode ser procurada onde?
JRLN -
Ela deve ser buscada fora do direito posto, numa análise comportamental. Justamente por isso, há uma confusão enorme sobre como e quando o fenômeno está ocorrendo. Muito do que se diz ser atuação ativista é, na verdade, o exercício de competências constitucionais dos julgadores. Os juízes, com a Constituição de 1988 e uma legislação posterior a ela mais principiológica, passaram a ter mais espaço de deliberação. O Código Civil de 2003 e o Novo Código de Processo Civil ampliaram os campos de interpretação e decisão dos juízes. Essas normas investiram mais em princípios, que são mensagens jurídicas abertas, do que em regras, que são ordens mais precisas. Quanto mais aberta é uma norma jurídica, mais amplitude passa a haver na atuação judicial. Mas muito do que se decide é, de fato, extrapolação dessas competências, mesmo considerada a abertura dada pelos princípios. Aí é que está o problema, aí é que mora o ativismo. Em resumo, ativismo judicial seria, em linguagem simples, a extrapolação de competências pelo Poder Judiciário no momento da decisão e decorre de uma má interpretação dos limites dados pelo ordenamento jurídico para essa mesma atuação.

JLPolítica - Quais são os modos mais ativos de manifestação desse ativismo judicial?
JRLN -
Vou usar um exemplo. Quando eu quero comprar algo por capricho, eu compro se tiver dinheiro. É um poder que tenho. Vi o livro de Jozailto Lima na livraria. Gosto de poesia. Quero comprar. Tenho crédito no cartão. Compro. Aí existe uma decisão humana, dentro do campo de possibilidades, balizada apenas pelo desejo racional, ou não, de ter ou fazer algo. Uma decisão judicial, no entanto, não é um ato puro de vontade, como comprar ou não um livro. Um juiz pode querer muito decidir em certo sentido. Pode achar bom, justo, útil. Se isso que ele entende bom, útil e justo não for conforme as regras e princípios do direito posto, ele é obrigado a realizar a autocontenção de sua vontade. Ele deve se submeter à ordem jurídica antes de agir conforme o seu sentido pessoal de justiça, bondade e utilidade. Quando ele extrapola esse dever, incide em comportamento ativista.

JLPolítica - De todas as esferas judiciais, o STF seria a que mais exorbita?
JRLN -
De modo algum. O Supremo é apenas o mais exposto dos órgãos judiciais brasileiros. É aquele que tem maior transparência e, por isso, é mais sujeito a críticas. Nós sabemos quem são os 11 do STF, mas não os 11 de Tite. Podemos assistir pela televisão ou pelo YouTube as sessões plenárias da Corte. Às vezes, o cidadão sequer sabe o nome do juiz de sua comarca, mas sabe quem são os juízes da nossa Suprema Corte. Por causa dessa exposição, o STF é muito mais sujeito ao escrutínio das diversas correntes de pensamento. Mas, de verdade, as atuações voluntaristas estão em todas as instâncias e modalidades de jurisdição. Pergunte a qualquer advogado se ele teria um caso, pelo menos, pra contar de atuação judiciária transgressora dos limites naturais desse poder e ele lhe relatará não um, mas vários. Aposto que não referirá um caso em curso naquela que chamamos de Excelsa Corte. Mencionará uma prisão preventiva fora dos requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, uma indenização civil desproporcional ou irrisória, uma verba trabalhista deferida ou denegada injustamente. Mas há ativismo lá no STF também, óbvio. O que agrava a situação é que o erro do Supremo é sempre mais abrangente e mais exposto que o de um juiz singular.

No dia em que se diplomou em direito pela Universidade Tiradentes

“A CARGA DE PROCESSOS DE UM JUIZ É DESUMANA"
“Você acha normal que um processo dure dez anos ou mais? Eu tenho ações em curso que começaram em 2001 e ainda não viram fim. Ações que propus. É isso normal? Penso que não. O Judiciário está falhando, claro. Todo mundo sabe que a carga de processos de um juiz brasileiro é desumana”

 JLPolítica - É razoável, hoje, dizer que o Judiciário respeita a repartição de poderes?
JRLN -
Como regra? Sim. Óbvio que há exceções. Mas, felizmente, são exceções. Nossa magistratura é muito boa. Digo sem favor. O concurso para ingresso nela é dificílimo, e só aí já se tem uma triagem na formação dos quadros. Se o exame de Ordem é um filtro rigoroso de conhecimentos técnicos para os que vestimos a beca, o concurso para a magistratura é ainda mais difícil para quem quer vestir a toga. Alguns dos seres humanos que mais admiro são ou foram juízes.

JLPolítica - O senhor acha que a Constituição Federal, em sua letra fria e orgânica, tem sido muito vilipendiada ultimamente?
JRLN -
Demais. Sempre foi. Falhamos diária e miseravelmente como Estado Constitucional. Fracassamos desde o mais elementar preceito constitucional, o da igualdade. Um negro e um branco, um homem e uma mulher, um heterossexual e um homossexual, um rico e um pobre, um nordestino e um sulista, um empregado e um desempregado ou precarizado, não têm a mesma expectativa, nem a mesma qualidade de vida, no Brasil.

JLPolítica - Essa diferença macula.
JRLN -
Essa diferença é uma nódoa em nosso caráter nacional. Vou lhe fazer a pergunta fundamental: todos somos realmente iguais perante a lei? É preciso ser ingênuo para crer que somos. Um mínimo de igualdade material é o pressuposto de uma cultura de liberdade. O meu filósofo liberal favorito, John Rawls, começa sua obra monumental “Uma teoria da Justiça” com uma máxima que deveria estar encravada em cada porta de repartição pública brasileira: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. Semana passada, o IBGE divulgou uma pesquisa que mostra que a desigualdade no Brasil aumentou. Logo, aumentou a injustiça. Por conseguinte, o vilipêndio maciço da Constituição Federal.

JLPolítica - É justo jogar por terra toda uma contribuição dada pela Lava Jato ao combate da corrupção no Brasil apenas em nome de supostos abusos de métodos?
JRLN -
De qual contribuição você está falando? Eu, sinceramente, tenho dificuldades em enxergar uma só que seja. As forças que ali trabalham serviram muito mais à cultura do espetáculo, no sentido dado pelo filósofo Guy Débord, que ao Estado de Direito. Explico. Todo santo dia, juízes estaduais e federais condenam e absolvem réus de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, dentre outros tantos crimes contra a administração pública, a ordem tributária e do colarinho branco. Esses juízes têm de administrar varas com centenas ou milhares de processos e respeitar o devido processo legal, talvez a maior de todas as conquistas civilizatórias. A polícia trabalha. O Ministério Público trabalha. A defesa trabalha. A decisão vem. Mas vem sem estrépito, sem espetáculo, com a discrição e o recato próprios da prestação jurisdicional que preza pela qualidade mais do que pelo retorno publicitário da medida adotada. Vem respeitando a morfologia e a fisiologia dos procedimentos, a começar do direito ao contraditório, à ampla defesa e a um julgador isento. Esses policiais, juízes, promotores, procuradores e advogados contribuem para a concretização do ideal de justiça em sede penal. Colaboram para que a corrupção seja efetivamente jugulada. Quando a própria ideia de devido processo legal sucumbe, em nome de um objetivo exterior, o combate à corrupção, não sobra nada apreciável. Nada, absolutamente. A maior contribuição da Lava Jato ao Brasil é negativa, lamento dizer e decepcionar quem porventura pense o contrário. Os muitos bilhões de reais recuperados teriam sido identicamente alcançados sem prejuízo das garantias processuais, sem o desmantelamento do direito de defesa, sem a necessidade de qualquer excesso. Todos os culpados devem ser assim declarados em um processo isento de abusos. E todos os inocentes têm o direito de não temer um juiz parcial, que sugira a uma das partes medidas e estratégias. Eu sou um advogado à moda antiga, Jozailto. Não espere de mim outra opinião.

Com o economista e escritor Dilson Barreto, na noite de autógrafo do livro sobre seu avô, o que muito lhe emocionou.
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