Opinião
Por | 19 de Set de 2021, 14h06
Paulo Freire, Milton Santos e Cora Coralina: um diálogo amoroso com a educação brasileira
Compartilhar
Paulo Freire, Milton Santos e Cora Coralina: um diálogo amoroso com a educação brasileira

Paulo Freire: conhecimento como instrumento de poder e libertação

[*] Mario Resende

Qual o grande tema presente nas escritas e entrelinhas dos livros do educador Paulo Freire? A depender dos estudiosos, uma vara de possibilidades será aqui enunciada. Eu afirmo que todos os escritos do professor Paulo Freire têm por objetivo principal desnudar e chamar atenção para o conhecimento como instrumento de poder e libertação.

Repito: conhecimento é poder! Conhecimento é libertação. Sempre foi. É. E será! O poder pode ensejar uma liberdade resultante pelos domínios do saber, dos códigos escritos e de tantos outros códigos sociais não escritos. Questionar esses códigos, descobrir, ser parte, dominar outros, resulta em corpos cidadãos empoderados, um poder que nos permite a ação política.

Vou sugerir um exemplo simplório: um cidadão viaja a uma cidade distante. Na rodoviária, há uns 2 mil km da sua casa, o ônibus faz uma parada. Na parede da lanchonete está escrito: “mate sua sede com H2O pura!”. O cidadão quer água e o que seria essa tal de H2O? 

Tímido, o cidadão que até já domina o código escrito, mas não o significado decodificado da água no simbologia química, não teve condições culturais para decidir uma simples ação política de vida: a de beber água. A de matar a sede. Não dominava o código. Como também não foi empoderado para questionar a existência do código, voltou para o ônibus sofrendo de sede. Sem leitura do mundo, sem poder, muitos homens e mulheres têm cidadania pela metade. E cidadania tem de ser plena. Cidadania é domínio da ação política.

A ação política, quando permeada por uma concepção emancipadora da sociedade, enriquecerá o conhecimento humano como espiral, nunca em forma piramidal, uma base enorme embaixo e uns poucos ilustres por cima. Por isso o conhecimento deve ser livre, amplo, divulgado e incentivado.

Eis mais uma grande lição do mestre Paulo Freire. Mas não é isso que vemos. Observamos doutores, mestres, movimentos e sindicatos falando de Paulo Freire de forma bancária. São uns possuidores das suas leituras, mas deslocados da realidade e da própria teoria que dizem defender e propagar. Uma pena: deturpam a obra do mestre.

Em tempos de pandemia, Paulo Freire nunca esteve tão necessário. O que pensaria o mestre sobre as crianças e professores, a sociedade, em particular os pobres desprovidos de pão e dos saberes, presos em suas casas, longe das escolas, o mundo com medo ante um vírus mortal, um amanhã inseguro e um normal abatido em pleno voo? Ouso afirmar: ele não proporia o niilismo!

Penso que ele sorriria com bondade. E relembraria aos educadores que governos e instituições, incluso os que dizem nos representar – e todos nos dizem isso -, quanto não ocupados por atores capacitados e comprometidos, ajudam a construir no cotidiano um conjunto de corpos tristes. Corpo triste é corpo sem vontade. Existe. Ou se movimenta pregando a distopia: o discurso diz uma coisa, a prática, outra.

A pandemia do coronavírus, o grande vilão do momento, já ajuda e muito nesse conjunto de tristezas. A realidade não se mostra como um campo florido para que as esperanças vicejem. Mas, para os sujeitos em estado de tristeza, a dominação, o controle, a morte dos sonhos, será muito mais facilitado, posto que, minados na raiz das suas capacidades cognitivas de reação, inovação, esperança, de fazer o novo e pensar positivamente, realizar o sonho, abraçar o desafio, reagem negativamente, mesmo quando são instigados a avançar nas suas potencialidades.

Descapacitar os sujeitos da sua condição inata de criadores de símbolos é prática há muito utilizada nas relações de poder. Por vezes ingênua. Mas suponho eu, na maioria das vezes, de forma proposital. Irresponsável e maldosa. Para isso, usam do mandonismo, alicerçado em preconceitos variados, a exemplo do patriarcalismo, do sexismo, do machismo e da ignorante política, valores altamente contrários aos ensinamentos de Paulo Freire.

Nos últimos tempos, mais ainda, o advento da máquina do fake news disseminada em páginas, blogs, discursos, etc, virou caso de polícia, justiça e problema médico. Inventam mentiras para quem acredita nelas - e quem há as retenha. E para induzir outros aos mesmos erros. Mentiras que disseminadas a ermo, viram verdades. Um pandemônio.

Paulo Freire ensinaria que a educação, o saber, o domínio do conhecimento, pelo contrário, necessita da alegria corporal para que seja realizado, introjetado, vivenciado, repartido e multiplicado, em espiral, aos saberes científicos e culturais de um povo.

O mestre relembraria que essa é a função mais digna dos professores e professoras no mundo. E, com certeza, nos diria ele: se nesse momento teremos problemas de chegar a todos, precisamos lutar para que todos tenham, mas em nome da sua comodidade, não abra mão daquilo que você pode fazer e chegar aos que hoje não podem estar fisicamente na escola. Quando a civilização humana já corre perigo, o que esperar da ação política responsável? Não devemos nos perder todos, se podemos salvar a muitos! 

Com certeza, Paulo Freire relembraria ainda que sua teoria emancipadora não foi escrita pra ser uma Bíblia de Estado, partido, grupo político de iluminados. Uma camisa de força. Mas um instrumento de reflexão, de ação, de reação, de teoria e de prática. Uma teoria que deve circular, em forma de espiral, porque justamente os saberes crescem quando, juntos, procuramos saídas e estudamos juntos as possibilidades. 

Relembro a uns tais freirianos que sempre o citam para impor a ação raivosa e estéril que os facilitam disseminar o conhecimento, que esse tipo de ação é uma aviltante deturpação da história e da obra do grande mestre. Um outro pensador, o intelectual negro Milton Santos, afirmou que o intelectual existe para criar desconforto.

Foi o que Paulo Freire fez e sua obra sempre o fará. Desconforto. Mas nenhum dos dois propôs o desconforto do niilismo. A postura raivosa do não buscar saídas. Niilismo, eles sabiam, é o fim da esperança. O fim da esperança é o cinismo petrificado. Espaço reprovável dos que nunca devem ser educadores. 

Louvemos então o desconforto para a construção. Desconforto, nesse momento, é se insurgir contra as tristezas provocadas pela pandemia e por políticas equivocadas que atrapalham tantas coisas, entre elas, pergunto, como em pleno século XXI não temos possibilidades de manter o conhecimento vivo e pulsante, ligando professores e alunos, país e sociedade, numa espiral, palavra escrita aqui de novo, para enfrentarmos os desafios que o momento presente e futuro nos impõe? 

Se não tivemos e agora temos, porque não a construímos ao invés de sermos do contra? De uma coisa tenho certeza: Paulo Freire não advogaria a volta da escola bancária do século XX. Por fim, eu ouso propor que, quem não gosta de ler, estudar, pensar e observar o mundo, buscar alternativas para um momento em que a vida humana entra em perigo de forma avassaladora, ou quem se nega a observar a transformação social como ação política de um povo letrado, instruído, leitor, cidadão transformador, produto da educação, seja presencial, a distância, semipresencial, mas educação acima de tudo, mas usa o nome do professor Paulo Freire para justificar sua avaria política, geralmente em nome de uma causa pouco nobre, pessoal, grupal ou odienta, releiam as obras do mestre.

Sim: releiam. São muitas. E são tantas. Todas permeadas por lições de amor ao conhecimento, ao ensinar e à alegria de viver, tendo na esperança e no louvor a vida seu fundamento maior. Os ódios pequenos, a produção de corpos tristes e desesperanças, as fake news inventadas contra todos os que teimam em manter a chama da educação viva e pulsante, mesmo em tempos difíceis, não têm nada de Paulo Freire.

Usam o nome dele para desmerecer uma obra que ensina há muito ser o papel do educador não o de um bancário do conhecimento, mas o mediador do conhecimento, aquele que empoderadamente busca saídas e soluções. Paulo Freire, com certeza, está aqui entre muitos de nós!

Com certeza e profissionalismo, nos diria: educadores e educadoras do mundo novo, não se deixem cair no niilismo, no ceticismo, na amargura, na tristeza, na crítica oca e vazia. Isso será o fim da esperança. Também não abram mão de fazer a crítica, procurar saídas, testar e construir o novo. Não abram mão da alegria e do sonho de fazer a diferença efetiva. A cultura humana e as nossas crianças precisam de vocês nesse momento. E lembrem-se de uma lição para a vida inteira: libertação não se faz com ódio e tristeza. 

Ódio e tristeza produzem o não conhecimento, a doença e o niilismo. O remédio para a cura desses males tem nome: educação! Os médicos da humanidade para esse problema são vocês, professores e professoras, educadores e educadores do povo do mundo. Uni-vos na esperança humana que somente a educação permite!

Já a poetisa Cora Coralina, na sua educadora doçura goiana, nos deixou um poema apropriado para esses tempos tão crus de vida.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso

aos que têm sede.

Dialogar com esses mestres que deixaram como lição maior o amor à vida, ao conhecimento e à ciência nos delega a responsabilidade de continuar a obra de civilizar a vida e dar sentido a existência humana. Tem função mais bela e inspiradora? Professoras e professores, bem-vindos ao diálogo!

[*] É professor da Universidade Federal de Sergipe.

Deixe seu Comentário

*Campos obrigatórios.