Relações internacionais
Por | 29 de Mar de 2021, 20h22
Demissão de Ernesto Araújo: fim de uma gestão sem precedentes na diplomacia brasileira
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Demissão de Ernesto Araújo: fim de uma gestão sem precedentes na diplomacia brasileira

Depois de dois anos e três meses que representaram mudanças sem precedentes em décadas de diplomacia brasileira, o período de Ernesto Araújo como chanceler do Brasil chegou ao fim nesta segunda-feira, 29/3. Ernesto pediu demissão após resistir por uma semana a intensas pressões políticas tanto do Congresso Nacional quanto dentro da própria Instituição que dirigia, o Itamaraty.

A gestão de Araújo foi marcada não só por um distanciamento em relação a posições históricas do país no xadrez global, mas também por uma redefinição sobre quais atores internacionais seriam considerados aliados prioritários.

Na visão de dezenas de embaixadores ouvidos pela BBC News Brasil ao longo dos últimos meses, Araújo subordinou a agenda das relações internacionais às pautas ideológicas caras ao eleitorado de Jair Bolsonaro no plano doméstico, o que acarretou, em última instância, custos ao país que culminaram com sua saída.

Há, no entanto, amplo ceticismo no Ministério das Relações Exteriores sobre o real impacto da saída de Ernesto Araújo no futuro das relações diplomáticas brasileiras. Discípulo do escritor Olavo de Carvalho, Araújo tinha relação simbiótica com um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, frequentemente considerado muito influente na atual postura internacional do Brasil.

Para muitos embaixadores e analistas, Araújo seria o mensageiro das ideias que, no limite, provinham do próprio Palácio do Planalto, e não o formulador do que seria uma diplomacia bolsonarista.

Histórica aliada de países em desenvolvimento e de organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), a diplomacia brasileira sob Araújo passou a atacar esses instrumentos, que segundo o chanceler seriam uma face do que ele chamava de "globalismo", "estágio preparatório para o comunismo", em oposição ao nacionalismo que prezava.

Saíram de cena cooperações estreitas com os vizinhos do Mercosul, com países africanos ou mesmo com o bloco dos emergentes BRICS, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e entraram em jogo alinhamentos aos posicionamentos dos Estados Unidos, sob o comando do então presidente republicano Donald Trump, e Israel, sob a batuta do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Ambos são expoentes de uma direita conservadora e populista com a qual o governo Bolsonaro se empenhou em estreitar laços.

Ainda em fóruns internacionais, o Brasil alterou sua postura de mediador de conflitos entre diferentes países e passou a assumir posições mais diretas - muitas vezes polêmicas e minoritárias -, em relação a temas em que antes era um interlocutor respeitado (como na questão dos direitos humanos) ou mesmo uma referência (como em medidas contra o aquecimento global).

A propósito da defesa de liberdades religiosas e valores da família, se alinhou a países como Arábia Saudita contra a promoção de ações em favor da educação sexual e de igualdade de gênero. Os diplomatas brasileiros foram orientados a substituir o termo "gênero" por "sexo" em suas manifestações, o que seria uma forma de combater a chamada "ideologia de gênero".

Nos EUA, Ernesto Araújo afirmou em mais de uma ocasião que as mudanças climáticas eram na verdade "alarmismo" para retirar soberania do Brasil sobre a Amazônia, enquanto repercutia no mundo as notícias de queimadas e desmatamento nos biomas brasileiros. "Qual o maior desafio que nossa civilização enfrenta? Algumas pessoas dirão 'mudanças climáticas' e isso absolutamente não é verdade", afirmou Araújo, em setembro de 2019, em palestra em Washington.

Na Assembleia Geral da ONU no ano passado, Bolsonaro disse que pressões internacionais contra o desmatamento derivavam de "brutal campanha de desinformação contra o Brasil" e responsabilizou os povos indígenas pelas queimadas, apesar pesquisadores da Universidade da Califórnia terem mostrado, no ano passado, que as áreas demarcadas costumam ser menos desmatadas. A postura se alinhava com o que preconizava o então presidente americano Donald Trump, que havia retirado os EUA do Acordo de Paris.

Contrariando seu histórico não intervencionista, o governo brasileiro se expressou abertamente sobre preferências eleitorais em países com interesses estratégicos. Foi assim na Argentina, onde apoiou o candidato Maurício Macri, derrotado pelo peronista Alberto Fernández. Foi assim nos EUA, onde apoiou Donald Trump e chegou a falar em fraude eleitoral antes de reconhecer a vitória do democrata Joe Biden. Foi assim na Bolívia, onde expressou simpatia pela direita de Luis Fernando Camacho, mas quem levou a presidência foi o candidato de Evo Morales, Luis Arce.

O chanceler também atacou abertamente a China, maior parceiro comercial do Brasil, em diversas postagens de Twitter. Ao fazer uma analogia entre o novo coronavírus e o que chamou de "comunavírus", um suposto plano chinês para implementar sua ideologia comunista globalmente por meio de medidas contra a covid-19 tomadas pela OMS.

Ainda no tema da pandemia, o Brasil não apoiou a quebra de patente de vacinas contra a covid-19, proposta pela Índia na Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano passado, colocando-se ao lado do interesse dos americanos e demais países ricos e contrariando liderança histórica do país no tema, conquistado com a quebra de patentes do coquetel anti-HIV/AIDS nos anos 2000.

E entrou no Covax, o consórcio da OMS pelo desenvolvimento e distribuição global de vacinas, apenas com a cota mínima, de 42 milhões de doses de vacinas. Segundo a revista Época, esse montante poderia ter ido a zero já que originalmente o chanceler, crítico da OMS, não pretendia ser parte do Covax e teria sido dissuadido pela embaixadora Nazareth Farani.

Em conjunto, as ações do Brasil no exterior provocaram uma tempestade perfeita. O Acordo Mercosul-União Europeia, assinado ainda no início da gestão Bolsonaro, teve sua implementação interrompida por alegadas preocupações dos europeus com a política ambiental do Brasil.

O meio ambiente também se tornou ponto prioritário do novo governo americano sob Joe Biden, que substituiu o principal aliado de Bolsonaro na Casa Branca. O Brasil passou a ser pressionado a se comprometer com metas ambiciosas para conservação ambiental e redução das emissões de gases estufa.

Diante dos desgastes de relações acumulados nos últimos meses, EUA, China e Índia não demonstraram grande disposição de ajudar o Brasil a aumentar seus estoques de vacina e de insumos para fabricação de imunizantes quando isso se tornou urgente, a partir de fevereiro. Tanto no caso da China quanto da Índia, houve atrasos e dificuldade na liberação de doses e insumos. Já os EUA anunciaram que liberariam 4 milhões de doses do imunizante AstraZeneca-Oxford, hoje sem uso no país, para México e Canadá, mas não se posicionaram pela venda de vacinas ao Brasil, apesar da recomendação para tal da própria comunidade acadêmica do país.

E a crise sanitária da covid se tornou também uma crise de imagem para o país, até então uma referência em saúde pública graças ao Sistema Único de Saúde. No último fim de semana, os três mais importantes jornais dos EUA publicavam reportagens sobre o que chamavam de "colapso previsível" do Brasil. No domingo, o chefe da consultoria Eurasia Group, Ian Bremmer, destacou em suas redes sociais que um em cada três mortos por covid-19 no último sábado estava no Brasil. "Pior gestão da epidemia - de longe - em qualquer grande economia", disse Bremmer.

É nesse contexto que a condição de Ernesto Araújo, considerada "insustentável" dentro do Itamaraty há meses, chega ao limite. Diante do diagnóstico de que a política do Planalto em relação à pandemia era um equívoco e poderia custar caro às suas pretensões eleitorais futuras, o Congresso passou a pressionar pela saída dos auxiliares de Bolsonaro que representavam a fonte do que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), qualificou como "erros primários" de gestão. O primeiro a ser desalojado da cadeira foi o general Eduardo Pazuello, até então ministro da Saúde.

Na sequência, as atenções dos parlamentares se voltaram a Araújo. "Nós tivemos muitos erros no enfrentamento dessa pandemia e um deles foi o não estabelecimento de uma relação diplomática de produtividade com diversos países que poderiam ser colaboradores nesse momento agudo de crise que temos no Brasil. Então ainda está em tempo de mudar para poder salvar vida", afirmou Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, na última quinta, 25/3.

A declaração foi feita um dia depois de Araújo ter falhado em explicar suas ações no combate à pandemia no Senado. Mais de dez senadores pediram abertamente que ele se demitisse, em uma situação considerada no Itamaraty como de "humilhação sem precedentes para um chanceler". Na mesma sessão em que Araújo chegou a ser chamado de "office boy de luxo", Filipe G. Martins, assessor internacional da presidência com grande ascendência sobre Araújo, fez um gesto considerado obsceno e racista aos senadores.

Depois do episódio, a saída de Araújo do posto passou a ser considerada apenas uma questão de (pouco) tempo temporária. Entre senadores, a percepção era de que Bolsonaro tentaria mantê-lo ainda por mais alguns dias, para não admitir fraqueza diante do Congresso e para viabilizar uma saída honrosa para um de seus ministros preferidos. Diante da incerteza, um grupo de 300 diplomatas do Itamaraty fez circular uma carta crítica a Araújo, iniciativa considerada inédita pelo tom e o tamanho da mobilização em um órgão de servidores disciplinados e respeitosos da hierarquia.

"Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil", dizia a carta, revelada pela Folha de S.Paulo.

A comunicação expunha que Araújo já não contava com apoio consistente dentro do órgão que dirigia e não só por questões ideológicas. No começo do ano, embaixadas e consulados tiveram dificuldades de pagar contas básicas - como luz e água - por falta de aprovação do orçamento do órgão. A gestão de recursos humanos e financeiros foi considerada "caótica" por um embaixador ouvido pela BBC News Brasil que enfrentou dificuldades em quitar o aluguel do prédio onde funciona a repartição no exterior que comanda.

Mas foi o próprio Araújo quem precipitou o fim de seu período à frente do Ministério das Relações Exteriores com um tuíte publicado na tarde de domingo, 29/3. "Em 4/3 recebi a Senadora Kátia Abreu para almoçar no Ministério de Relações Exteriores. Conversa cortês. Pouco ou nada falou de vacinas. No final, à mesa, disse: 'Ministro, se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será o rei do Senado. 'Não fiz gesto algum", diz o post.

Abreu reagiu com indignação à sugestão de que ela teria tentando operar lobby em favor dos chineses no certame da rede 5G brasileira, e negou que isso tenha acontecido. Chamou Araújo de marginal e cobrou sua imediata demissão, no que contou com o endosso de seus colegas senadores.

Ainda sem posto definido, Araújo, que é funcionário de carreira e sempre foi considerado pelos pares uma figura discreta e de pouco brilho dentro do Itamaraty deve submergir na estrutura do órgão. A menos que a experiência de ministro o tenha convertido definitivamente de diplomata em político.

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