Reportagem Especial

Tatianne Santos Melo

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Maconha: o limite do uso recreativo e medicinal

Senado acatou sugestão e aprovou uso médico da planta, mas liberação ainda esbarra em questões éticas, morais e financeiras


Entre a proibição e a liberação das drogas, está encrustado um tema bastante complexo e urgente: o uso da maconha em tratamentos medicinais. Pesquisas apontam bons resultado do uso dela, mas o debate esbarra em uma legislação defasada, além de conceitos morais e altos custos da substância.

E, na semana passada, ao acatar a sugestão de liberação do uso da cannabis medicinal e do cânhamo industrial, popularmente conhecida como maconha, o Senado deu um passo significativo para tornar efetivo o tratamento à base dessa substância.

O texto aprovado cria uma espécie de marco regulatório para esse uso e teve o senador sergipano Alessandro Vieira, do Cidadania, como relator. Alessandro Vieira falou ao JLPolítica sobre o voto favorável num tema, ainda, polêmico e que divide tantas opiniões.

Vários medicamentos já são produzidos em outros países e em muitos casos só a importação ajuda no tratamento
Alessandro Vieira: “é um direito já assegurado judicialmente a doentes que têm condições financeiras”

USO ANTIGO
“O uso médico da cannabis passou no teste da história humanidade, e ela é mencionada nos textos médicos mais antigos e medievais. Fórmulas contendo a semente do cânhamo ou copas floridas eram frequentemente recomendadas para partos difíceis, cólicas menstruais, reumatismo e convulsões, dores de ouvido, febres, disenteria, epilepsia e insônia, assim como para aliviar a tensão nervosa, estimular o apetite e servir como um analgésico e afrodisíaco”, revela.

O livro é resultado de uma longa pesquisa bibliográfica e também da própria vivência do escritor, que trabalhou como agente penitenciário e como professor dos detentos, além de ser professor em escolas convencionais. Essa prática faz com que ele não tenha dúvidas: “é mil vezes melhor do que proibi”. Mas, Waldemar também admite que essa tarefa não é fácil.

“Somente a legalização da maconha possibilitará a redução drástica dos índices de violência. Isso porque, na descriminalização, a figura do traficante dificilmente some do mapa; já na legalização, o Estado tratará o maconheiro hoje como alguém que planta erva cidreira: você já viu na vida alguém ser preso porque possui toneladas de erva cidreira dentro ou fora de casa?”, questiona.

Livro “Pé de maconha – Che Cannabis nas andanças da ciência,

CO-RELAÇÃO
Ela lembra que, no atual estágio da ordem jurídica brasileira, a utilização medicinal da maconha in natura é proibida. “Ou seja, a pessoa plantar e utilizar para consumo próprio é proibido, precisa de autorização judicial.  Por outro lado, a Anvisa já autorizou a importação  e a venda de medicamentos à base de tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD)”, explica.

Clarissa acredita que o mundo ocidental caminha para a regulamentação do uso das drogas e que Sergipe segue o ritmo dos demais Estados nessa discussão. Já o senador Alessandro Vieira discorda. Ele não vê relação entre a possibilidade do uso medicinal com a descriminalização da maconha. “Não existe nenhuma ligação entre as duas coisas”, diz.

Waldemar Valença Pereira é um pesquisador do tema. Formado em Letras pela Universidade Tiradentes e mestre m Letras pela Universidade Federal de Sergipe, ele publicou o livro “Pé de maconha – Che Cannabis nas andanças da ciência”, no qual aponta que, através dos milênios, segundo a história da humanidade e, também, da mitologia chinesa, relacionada à cannabis sativa, o mais antigo uso médico da maconha foi registrado na China.

Waldemar Valença: “somente a legalização da maconha possibilitará a redução drástica dos índices de violência”

COMPONENTES
Segundo ele, pensando no potencial lesivo das diversas drogas ilícitas que estão em circulação na sociedade, a maconha apresenta um baixo poder lesivo quando comparado com cocaína, crack, heroina, etc. “Além disso, outro ponto importante no debate é a existência de alguns componentes ativos que podem ser utilizados para fins não recreativos e que necessitam de investigação e pesquisa”, pontua.

Gabriel Passos acredita que a discussão em torno do uso medicinal da maconha ainda é muito incipiente em Sergipe. “Na Paraíba existe a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), que é autorizada a fazer o plantio da maconha para uso medicinal”, compara o médico.

Assim como Gabriel, a advogada Clarissa Marques França, especialista em Direito Médico pela UERJ, presidente da Comissão de Direito Médico e Saúde da OAB/SE, acredita que o país está, sim, caminhando para a descriminalização da droga. “Já temos três votos a favor da descriminalização no STF. Entretanto, gera preocupação a onda conservadora que vivemos no Brasil hoje, que pode , não deveria, influenciar a decisão  dos ministros do STF”, opina Clarissa França.

Clarissa França: “a pessoa plantar e utilizar para consumo próprio é proibido, precisa de autorização judicial”

NECESSÁRIO
Em resumo, para Waldemar, o debate sobre a descriminalização da maconha precisa vencer – e tem vencido – a ideia de proibição dela, já que a maconha é respeitada e também classificada como uma erva medicinal pelas pesquisas científicas do mundo todo. “E, por outro lado, superada a ideia tosca da proibição, cabe ao povo brasileiro uma compreensão filosoficamente jurídica e literariamente medicinal sobre o assunto, em termos de liberações futuras para o uso recreativo (a liberdade individual) e para o uso medicinal (farmacologia médica e terapêutica) da cannabis sativa”, ressalta.

Ou seja, para ele, é entender a necessidade que urge na sociedade no sentido de implantar uma política de legalização da maconha tão ampla quanto em alguns lugares da Austrália, onde a erva é amada e legalizada, seja medicinal ou recreativamente. “Com a legalização da cannabis sativa, evitaremos a interferência política brutalmente negativa e ambiciosa das indústrias farmacêuticas diante do controle monopolizador de uma planta milenar e curativa. Hoje a polícia, no amanhã a farmácia?”, pondera.

De acordo com ele, “quando nós percebermos que a maconha gera dinheiro e saúde para a comunidade rural e urbana, estaremos mais preparados para um debate sobre esse uso, não só medicinal, mas também recreativo, nutricional e espiritual dela. Entretanto, como sociedade, não estamos dispostos a discutir a possibilidade dos vícios autoadministrados e a possibilidade de escolha inteligente entre as plantas às quais nos aliamos. Com o tempo, e talvez em consequência do desespero, isso acontecerá”. Resta saber quando...

Votação no Senado acatou sugestão de uso médico

PESQUISA
“Haja vista que existe comprovação clínica suficiente de prejuízos para as funções neuropsicólogas, como exemplo, transtornos mentais em pessoas suscetíveis, aumento do risco de psicose, diminuição do QI das pessoas que a usam, etc”, afirma Henrique Batista. O médico explica que já existe o uso restrito da substância extraída da maconha, que é o canabidiol, sob a forma de uso compassivo em casos bem selecionados, como crises convulsivas refratárias em crianças e adolescentes ou em projetos de pesquisa autorizados pelos Comitês de Ética.

“Os estudos sob a forma de ensaios clínicos controlados com metodologia científica aprovada podem trazer evidências científicas que comprovem eficácia e segurança para seu uso em outras doenças. No momento, somente seu derivado, o canabidiol em uso compassivo”, ressalta.

Mas, segundo ele, “espera-se que os resultados clínicos com uso do canabidiol, além de outros estudos clínicos, possam resultar em benefícios para determinados pacientes”. Exatamente por isso, o médico confirma que a temática tem despertado o interesse de toda a população brasileira, e do mundo.

IN NATURA
“Recentemente, houve uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal no qual em Sergipe temos acompanhado com interesse genuíno no encaminhamento do tema em questão. Por enquanto, os médicos somente têm autorização para prescrever o canabidiol, e não in natura para uso medicinal”, reitera Henrique Batista.

O médico Gabriel Passos Souza, residente em Oncologia Clínica pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, reforça que o uso medicinal da maconha ainda é um tema polêmico e controverso. Segundo Gabriel Passos, existem algumas substâncias extraídas da maconha, como os canabidiois, que são processados e vendidos em forma de óleo, que têm indicação em algumas situações específicas.

“O principal e mais reconhecido uso está na epilepsia refratária, onde os resultados parecem mais consistentes na redução do número e da intensidade das crises. Outro cenário em investigação e que há a utilização da maconha medicinal está no auxílio no controle de dor em pacientes com dor refratária a medicações em altas doses, como também como tratamento da caquexia secundária a neoplasias”, revela.

Segundo Henrique Batista, Cremese entende que proposta de regulamentação poderá trazer danos à população

“CAUSA PRÓPRIA”
“Resumidamente, ela propõe a liberação, sob regulamentação da Anvisa, de remédios produzidos a base de canabis. Ela não aceita autocultivo ou consumo recreativo. Só a produção regulada de remédios”, ressalta o parlamentar. Para Alessandro, o que levou os colegas a também votarem a favor da liberação foi a compreensão da necessidade.

“Eles ouviram não só o meu relatório, mas também o testemunho da senadora Mara Gabrilli, que usa o remédio a base de canabis para controlar convulsões decorrentes da sua condição física”, afirma. Segundo Mara Gabrilli, ao rejeitar a proposta, o Senado estaria virando as costas para as famílias que precisam da maconha medicinal e estão sofrendo.

“Se a gente aprovar um projeto permitindo só o canabidiol, o medicamento que eu tomo vai ser proibido. Isso vai fazer com que eu perca a minha força laboral. E, poxa, alguém aqui já me viu alucinando em algum canto do Congresso? Alguém aqui já me viu falando besteira? Alguém aqui tem algum senão quanto à minha dedicação, à minha seriedade no meu trabalho?”, questionou Mara.

USO MÉDICO
Autor de um projeto de lei, o PL 5.158/19, que prevê a distribuição do canabidiol pelo Sistema Único de Saúde – SUS –, mas que não contempla outras substâncias medicinais produzidas a partir da maconha, o senador Eduardo Girão, Podemos\\CE, defendeu que o assunto não pode ser tratado apenas com emoção, mas com responsabilidade.

Girão destacou que a ciência tem demonstrado que, para algumas pessoas, a maconha medicinal causa a piora da saúde. O senador também apontou vícios de inconstitucionalidade e problemas de juridicidade para votar contra a SUG 6/2016, que, de acordo com ele, já está contemplada no ordenamento jurídico brasileiro.

No âmbito medicinal, o cardiologista Henrique Batista , integrante do Conselho Regional de Medicina do Estado de Sergipe – Cremese –, considera o debate atual e afirma que a entidade tem uma compreensão muita clara que do ponto de vista de segurança do paciente, a proposta de regulamentação do plantio da maconha - Cabanis sativa - em casa ou outro ambiente privado de laboratório poderá trazer danos para a população.

Mara Gabrilli: “alguém aqui já me viu alucinando em algum canto do Congresso?”

LIMITADO
Porém, para ele, é importante frisar que os estudos que embasam essas indicações avaliaram, em sua maioria, um pequeno número de pacientes em contextos restritos. “Para os casos com indicação, ela pode mudar o panorama do paciente e da família, mas atualmente isso se aplica a poucas condições clínicas”, reforça. Ou seja, “pensando no contexto amplo da Medicina, a substância ainda ocupa um espaço reduzido dentro dos diversos tratamentos que existem”.

Apesar disso, Gabriel não acredita que significa dizer que não haja espaço para a ampliação da sua indicação, conforme estudos mostrem que há benefício para os pacientes, como, por exemplo, no auxílio de dores crônicas, no manejo da caquexia relacionada a neoplasias, em alguns sintomas da doença de Parkinson avançada, entre outras.

Ele admite que o debate pode contribuir para a descriminalização da droga, “visto que já existem algumas indicações bem-definidas, como nas epilepsias refratárias, e a sua proibição leva a angústia das famílias, com processos burocráticos para se conseguir a liberação da importação, sem falar no alto custo de se importar o canabidiol”.

PROIBIÇÃO
Além disso, o médico chama a atenção para o fato de que a proibição também bloqueia as pesquisas, na medida em que dificulta o acesso de pesquisadores à substância de forma legal, impedindo que outras indicações sejam descobertas e que se faça uma análise de segurança de longo prazo.

Nesse sentido, Gabriel Passos considera que há um movimento de mudança do foco das políticas públicas, em relação a todas as drogas, de uma visão de combate ostensivo e repressivo – de guerra às drogas mesmo –, para uma visão de controle a partir da redução de danos.

Essas mudanças, de acordo com o médico, estão ocorrendo em grande parte dos países desenvolvidos e, naturalmente, chegaram ao Brasil. “A questão da descriminalização da maconha entra nesse contexto e, a meu ver, essa é uma discussão muito importante, visto que a política de guerra às drogas não obteve êxito no objetivo de coibir o uso dessas substâncias”, avalia.

Gabriel Passos: “para os casos com indicação, ela pode mudar o panorama do paciente e da família”